Para As Raparigas de Coimbra
1
Ó choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós:
És tal qual meu avôzinho,
Falta-te apenas a voz.2
Minha capa vos acoite
Que é p’ra vos agazalhar:
Se por fóra é cor da noite,
Por dentro é cor do luar…3
Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do céu!4
A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao sol:
Não cae, tolinho, a essa isca…
Só pondo uma flor no anzol!5
A lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É d’uma certa farinha
Que não apanha bolor!6
Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu’é da tua agoa?
Qu’é dos prantos que eu chorei?7
A cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim:
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam, assim.8
–
Passagens sobre Dois
1685 resultadosTenha cuidado ao emprestar dinheiro a amigos. Você pode perder as duas coisas.
Os enamorados que se veem e se falam têm a felicidade do amor; os que vivem separados têm duas felicidades: a do amor e a da esperança.
Há duas coisas a que temos de nos habituar, sob pena de acharmos a vida insuportável: são as injúrias do tempo e as injustiças dos homens.
Dois bons poemas não valem mais juntos do que o melhor dos dois.
A amizade redobra as alegrias e reparte as penas em duas metades.
Como é pesado quando um coração sozinho tem que sofrer por dois.
A vida é puro ruído entre dois silêncios abismais. Silêncio antes de nascer, silêncio após a morte.
As Uniões Necessárias
A primeira união necessária é a de dois seres que são incapazes de existir um sem o outro: é o caso do macho e da fêmea tendo em vista a procriação (e essa união nada tem de arbitrária, mas como nas outras espécies animais e nas plantas, trata-se de uma tendência natural a deixar atrás de si um outro ser semelhante); é ainda a união daquele cuja natureza é comandar com aquele cuja natureza é ser comandado, tendo em vista a sua conservação comum.
A diferença da infidelidade nos dois sexos é tão real, que a mulher apaixonada pode perdoar uma infidelidade, o que é impossível a qualquer homem.
O Que Devemos Sentir
Todas as pessoas devem ter experimentado a sensação desagradável que se tem nas estações de caminho de ferro. Vamos despedir-nos de alguém. A pessoa já entrou no comboio, mas ele demora a partir. Ali ficam as duas pessoas, uma na plataforma e a outra à janela, esforçando-se por conversar, mas de repente não têm nada para dizer.
Isto, evidentemente, resulta de não podermos sentir o que queremos. A situação impõe-nos um determinado sentimento. E quem não experimentou aquele tremendo alívio quando o comboio finalmente parte?
Ou nos funerais. Quando alguém morre ou adoece, quando surgem as desilusões, espera-se sempre que sintamos determinadas coisas.
Em todas as situações, excepto as mais quotidianas, as mais neutras, há uma pressão que se exerce sobre nós, que nos dita a forma como devemos conduzir-nos, aquilo que devemos sentir, E se examinarmos bem o fenómeno, verificamos, não raras vezes, que esses papéis nos são atribuídos por romances, filmes ou peças de teatro que vimos há muito tempo.
Quando somos realmente confrontados com situações invulgares (por exemplo, rivalidades que prevíamos e não se verificam, e em vez disso se transformam num amor que nos deixa sós), a primeira coisa a que nos agarramos são esses padrões sentimentais livrescos.
Joropo Para Timples E Harpa
Em duas asas prontas para o vôo
assim se foi em par a minha vida
e com rilhar de dentes me perdôo
trilhando as horas nuas na medidaBilros tecendo rendas amarelas
bordando em vão um tempo já remoto
no sol dos girassóis da cidadela
canto um recanto que me faz devotoA dor que existe em mim raiz que medra
no rastro mais sombrio as minhas luas
talvez não fora Sísifo ou a pedraque encontro todo dia pelas ruas
ao revirar as heras nessa redra
trilhando na medida as horas nuas
Mísera Condição a de um Artista
Peguei hoje por acaso num livro meu. Abri, comecei a ler, mas ao cabo de duas páginas desisti. Era tal a sensação de inacabado, de provisório e de rudimentar que tudo aquilo me dava, que fugi de mim próprio. Mísera condição a de um artista! Os outros, os vulgares, como homens, em relação à vida temporal, têm pelo menos esta piedade do tempo: o nivelamento de todas as horas, o esquecimento brumoso dos trágicos relevos do caminho andado. O pobre do poeta ou do escritor, esse vai deixando em cada passo a verónica da sua imaturação, da sua gaguez, — sem poder ao fim, quando do alto cuida ver o horizonte com maior lonjura, dar uma cor mais funda e mais significativa aos toscos painéis que pintou outrora.
As tragédias verdadeiras no mundo não são conflitos entre o certo e o errado. São conflitos entre dois direitos.
A Felicidade não Tem Medida
Não duvidas de que a vida feliz seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode, pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara: se disseres que alguém é “mais” feliz, tornarás possível que se diga também “muito mais”; e assim irás fazendo inúmeras gradações no supremo bem, quando por “sumo bem” eu entendo tudo o que não tem valor algum acima de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua própria; ora, um homem feliz não considera nada preferível à sua vida.
Qualquer destas duas situações é inaceitável: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo for. Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesmo,
A Fome E O Amor
A um monstro
Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os doisRepresentam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!
Todas as Nossas Paixões se Justificam a Si Próprias
Existem duas ocasiões distintas em que examinamos a nossa própria conduta e buscamos vê-la sob a luz em que o espectador imparcial a veria: primeiro, quando estamos prestes a agir; e, segundo, depois que agimos. Em ambos os casos os nossos juízos tendem a ser bastante parciais, mas eles tendem a tornar-se ainda mais parciais quando seria da maior importância que não fossem. Quando estamos prestes a agir, a veemência da paixão raramente nos permitirá considerá-la com a isenção de uma pessoa neutra. As violentas emoções que nesse momento nos agitam distorcem os nossos juízos sobre as coisas, mesmo quando buscamos colocar-nos na situação de outra pessoa. (…) Por essa razão, como diz Malebranche, todas as nossas paixões se justificam a si próprias, e parecem razoáveis e proporcionais aos seus objectos enquanto nós estivermos a senti-las. (… ) A opinião que cultivamos do nosso próprio carácter depende inteiramente dos nossos juízos acerca da nossa conduta passada. Mas é tão desagradável pensarmos mal de nós mesmos que amiúde afastamos propositadamente o nosso olhar das circunstâncias que poderiam tornar o julgamento desfavorável. (…) Esse auto-engano, essa fraqueza fatal dos homens, é a fonte de metade das desordens da vida humana. Se pudéssemos ver-nos como os outros nos vêem,
Há só duas artes verdadeiras: a Poesia e a Escultura. A Realidade divide-se em realidade espacial e realidade não espacial, ou ideal. A escultura figura a realidade espacial (que a pintura desfigura e abaixa e a arquitectura artificializa porque não reproduz uma coisa real mas outra coisa). A música, que é a arquitectura da poesia, isola uma coisa, o som, e quer dar o ritmo fora do humano, que é a ideia.
Saudação aos que Vão Ficar
Como será o Brasil
no ano dois mil?
As crianças de hoje,
já velhinhas então,
lembrarão com saudade
deste antigo país,
desta velha cidade?
Que emoção, que saudade,
terá a juventude,
acabada a gravidade?
Respeitarão os papais
cheios de mocidade?
Que diferença haverá
entre o avô e o neto?
Que novas relações e enganos
inventarão entre si
os seres desumanos?
Que lei impedirá,
libertada a molécula
que o homem, cheio de ardor,
atravesse paredes,
buscando seu amor?
Que lei de tráfego impedirá um inquilino
– ante o lugar que vence –
de voar para lugar distante
na casa que não lhe pertence?
Haverá mais lágrimas
ou mais sorrisos?
Mais loucura ou mais juízo?
E o que será loucura? E o que será juízo?
A propriedade, será um roubo?
O roubo, o que será?
Poderemos crescer todos bonitos?
E o belo não passará então a ser feiura?
Haverá entre os povos uma proibição
de criar pessoas com mais de um metro e oitenta?
Mas a Rússia (vá lá,
Descer ao Nível do Outro
Há certas pessoas de certo estofo ou carácter com as quais nunca nos devemos meter, das quais não nos devemos queixar senão o menos que pudermos, contra as quais não é permitido termos razão.
Entre duas pessoas que tiveram uma violenta discussão, na qual uma tem razão e a outra não, o que a maior parte das pessoas que assistiram à discussão nunca deixam de fazer, para se dispensarem de julgar, ou por temperamento que sempre me pareceu deslocado, é condenar os dois: lição importante, motivo urgente e indispensável para fugir a oriente quando o tolo está no ocidente, a fim de evitar dividir com ele o mesmo agravo.