Dominar ou Morrer
Uma espécie nasce, um tipo fixa-se e torna-se forte sob a longa luta com condições desfavoráveis essencialmente constantes. Inversamente, sabe-se pelas experiências dos criadores de gado que as espécies que foram superalimentadas e, de um modo geral, tiveram demasiada protecção e cuidados, logo tendem marcadamente para a variação de tipos e abundam em prodígios e monstruosidades (também em vícios monstruosos). Considere-se agora uma comunidade aristocrática, por exemplo uma antiga polis grega ou Veneza como instituição voluntária ou involuntária, destinada à selecção: há ali homens convivendo dependentes uns dos outros e que querem impor a sua espécie, em geral porque se têm que impor ou de contrário correm o terrível risco de serem exterminados.
Passagens sobre Espécies
599 resultadosTodas as espécies de inclinações, de amizades, de amor são, simultaneamente, fisiológicas. Ninguém entre nós consegue saber quais as profundezas e quais as alturas que a realidade física atinge.
Há uma tendência autoritária em muitos países. Nada restou dos ideais. A esquerda sofre uma espécie de tentação maligna que é a fragmentação. Não vejo nada mais estúpido do que a esquerda. Uns enfrentam os outros, por grupos, por partidos, por opções.
Toda a Ideia Geral é Puramente Intelectual
As ideias gerais só se podem introduzir na espécie com o auxílio das palavras, e o entendimento não as apreende senão por meio das proposições. É uma das razões por que os animais não poderiam formar tais ideias, nem jamais adquirir a perfectibilidade que delas depende. Quando um macaco vai, sem hesitar, de uma noz a outra, julga-se que tenha a ideia geral dessa espécie de fruta e que compare o seu arquétipo a esses dois indivíduos? Não, sem dúvida; mas, a vista de uma dessas nozes lembra à sua memória as sensações que recebeu da outra, e os seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu gosto a modificação que vai receber. Toda a ideia geral é puramente intelectual; por pouco que a imaginação tome parte nela, a ideia torna-se, logo, particular.
Procurai traçar a imagem de uma árvore em geral, e jamais o conseguireis; contra a vossa vontade, é preciso vê-la grande ou pequena, desgalhada ou em copa, clara ou escura; e, se dependesse de vós não ver senão o que se acha em toda a árvore, essa imagem não se pareceria mais com uma árvore. Os seres puramente abstractos vêem-se do mesmo modo, ou não se concebem senão por meio do discurso.
Distraidamente, a mulher olhou para José Arcadio e examinou com uma espécie de fervor patético o seu magnífico animal em repouso.
A Felicidade Está Fora da Nossa Realidade
O amoroso apaixonado já não vive em si, mas no que ama; quanto mais se afasta de si para se fundir no seu amor, mais feliz se sente. Assim, quando a alma sonha em fugir do corpo e renuncia a servir-se normalmente dos seus orgãos, podeis dizer com razão que ele enlouquece. As expressões correntes não querem dizer outra coisa: «Não está em si… Volta a ti… Ele voltou a si.» E quanto mais perfeito é o amor, maior a loucura e mais feliz.
Quem será, pois, essa vida no Céu, à qual aspiram tão ardentemente as almas piedosas? O espírito, mais forte e vitorioso, absorverá o corpo; isto será tanto mais fácil quanto mais purificado e extenuado tiver sido o corpo durante a vida. Por sua vez, o espírito será absorvido pela suprema Inteligência, cujos poderes são infinitos. Assim se encontrará fora de si mesmo o homem inteiro e a única razão da sua felicidade será de não mais se pertencer, mas de submeter-se a este soberano inefável, que tudo atrai a si.
Uma tal felicidade, é certo, só poderá ser perfeita no momento em que as almas, dotadas de imortalidade, retomem os antigos corpos. Mas, como a vida dos piedosos não é mais do que a meditação sobre a eternidade e como que a sombra dela,
Os homens se dividem em duas espécies: os que têm medo de viajar de avião e os que fingem que não têm.
A Pluralidade Humana
A pluridade humana, condição básica da acção e do discurso, tem o duplo aspecto da igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus antepassados, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da acção para se fazerem entender. Com simples sinais e sons poderiam comunicar as suas necessidades imediatas e idênticas.
Ser diferente não equivale a ser outro – ou seja, não equivale a possuir essa curiosa qualidade de «alteridade», comum a tudo o que existe e que, para a filosofia medieval, é uma das quatro características básicas e universais que transcendem todas as qualidades particulares. A alteridade é, sem dúvida, um aspecto importante da pluralidade; é a razão pela qual todas as nossas definições são distinções e o motivo pelo qual não podemos dizer o que uma coisa é sem a distinguir de outra.
Na sua forma mais abstracta, a alteridade está apenas presente na mera multiplicação de objectos inorgânicos, ao passo que toda a vida orgânica já exibe variações e diferenças,
Diferentes Caminhos para uma Felicidade Sempre Insuficiente
O objectivo para o qual o princípio do prazer nos impele — o de nos tornarmos felizes — não é atingível; contudo, não podemos — ou melhor, não temos o direito — de desistir do esforço da sua realização de uma maneira ou de outra. Caminhos muito diferentes podem ser seguidos para isso; alguns dedicam-se ao aspecto positivo do objectivo, o atingir do prazer; outros o negativo, o evitar da dor. Por nenhum destes caminhos conseguimos atingir tudo o que desejamos. Naquele sentido modificado em que vimos que era atingível, a felicidade é um problema de gestão da libido em cada indivíduo. Não há uma receita soberana nesta matéria que sirva para todos; cada um deve descobrir por si qual o método através do qual poderá alcançar a felicidade. Toda a espécie de factores irá influenciar a sua escolha. Depende da quantidade de satisfação real que ele irá encontrar no mundo externo, e até onde acha necessário tornar-se independente dele. Por fim, na confiança que tem em si próprio do seu poder de modificar conforme os seus desejos. Mesmo nesta fase, a constituição mental do indivíduo tem um papel decisivo, para além de quaisquer considerações externas. O homem que é predominantemente erótico irá escolher em primeiro lugar relações emocionais com os outros;
Deus Precisa de Companhia
A minha proposição inicial, que me atrevo a considerar indiscutível, é de que Deus criou o universo porque «se sentia» só. Em todo o tempo antes, isto é, desde que a eternidade começara, «tinha estado» só, mas, como não «se sentia» só, não necessitava inventar uma coisa tão complicada como é o universo. Com o que Deus não contara é que, mesmo perante o espectáculo magnífico das nebulosas e dos buracos negros, o tal sentimento de solidão persistisse em atormentá-lo. Pensou, pensou, e ao cabo de muito pensar fez a mulher, «que não era à sua imagem e semelhança». Logo, tendo-a feito, viu que era bom. Mais tarde, quando compreendeu que só se curaria definitivamente do mal de estar só deitando-se com ela, verificou que era ainda melhor. Até aqui tudo muito próprio e natural, nem era preciso ser-se Deus para chegar a esta conclusão. Passado algum tempo, e sem que seja possível saber se a previsão do acidente biológico já estava na mente divina, nasceu um menino, esse sim, «à imagem e semelhança de Deus». O menino cresceu, fez-se rapaz e homem. Ora, como a Deus não lhe passou pela cabeça a simples ideia de criar outra mulher para a dar ao jovem,
O Absoluto do Ser
– Deus não é bom?
– Não, para falar com propriedade, Deus não é bom: é. Bom, mau, são pobres palavras que se aplicam a um conjunto de regras respeitantes a alguns pormenores da nossa vida material. Porque é que Deus seria limitado pelas nossas pobres palavras e valores? Não, Deus não é bom. É mais do que isso. É a forma mais rica, mais completa, mais poderosa do ser, de qualquer maneira. Torna concreta a abstracção mesmo da forma do ser. E penso que o «envisagement» do ser não podia ser possível se Deus não lhe tivesse dado anteriormente o seu estado. Deus é a criação. É pois um princípio inextinguível, não orientado, a própria vida. Lembrem-se das palavras: «Eu sou Aquele que sou». Nenhuma outra palavra humana compreendeu e relatou melhor a forma divina. Intemporal, não, nem sequer intemporal e infinita. O princípio. O facto de que há qualquer coisa no lugar onde não havia nada.
– Mas então, Deus não tem necessidade…
– E até mesmo para lá de toda a expressão. Se quiser, eu sou Deus. Não há dúvida a sustentar, pergunta a fazer. Você existe. Portanto é Deus. Você não pode existir de outro modo.
A Indiferença ou a Paixão pelos Outros
O que é mais proveitoso — perguntava eu — representar o mundo como pequeno ou como grande? Vejamos como eu resolvia o assunto: os homens eminentes, os capitães famosos, os estadistas competentes, em suma, todos os conquistadores e todos os chefes que se elevam pela violência acima dos outros homens, devem ser feitos de tal maneira que o Mundo lhes deve parecer como um tabuleiro de damas. Se assim não fosse, eles não teriam a rudeza e a impassibilidade necessárias para subordinarem audaciosamente aos seus imprevisíveis planos a felicidade e os sofrimentos dos indivíduos isolados, sem se importarem nada com isso. Em contrapartida, uma tão limitada concepção pode levar os homens a não realizarem coisa alguma, porque todo aquele que considera a humanidade como uma coisa sem importância acabará por a achar insignificante e por soçobrar na indiferença e na passividade. Desdenhoso de tudo, preferirá a inércia à acção sobre os espíritos, sem contar que a sua insensibilidade, a sua ausência de simpatia e a sua letargia chocarão toda a gente, ofendendo constantemente um mundo imbuído do seu próprio valor. Assim se lhe fecharão todas as vias de um sucesso imprevisto. Será mais razoável — perguntava eu, então — ver na humanidade qualquer coisa de grande,
A Adulação na Amizade
Pois que é próprio da verdadeira amizade dar e receber conselhos, dá-los com franqueza e sem azedume, recebê-los com paciência e sem repugnância, persuadamo-nos bem de que não ha defeito maior na amizade que a lisonja, a adulação, as baixas complacências. Com efeito, não se poderia dar bastantes nomes ao vício desses homens frívolos e enganadores, que falam sempre para agradar, e jamais para dizer a verdade.
A dissimulação é funesta em todas as coisas (pois corrompe e altera em nós o sentimento da verdade) mas é, sobretudo, contrária à amizade. Destrói a sinceridade, sem a qual não subsiste mesmo o próprio nome da amizade. Se a força da amizade consiste em fazer de várias almas uma só, como seria assim, se em cada homem a alma não é a mesma, não é constante, mas variável, mutável, tomando mil formas? De facto, que há de mais mutável, de mais versátil que a alma daquele que se transforma não apenas segundo o sentimento e a vontade dum outro, mas a um pequeno sinal deste, a um mínimo gesto seu? «Ele diz não? Eu digo não; ele diz sim? eu digo sim: numa palavra, eu me impus a obrigação de tudo aplaudir»,
Todo o homem recebe duas espécies de educação: a que lhe é dada pelos outros, e, muito mais importante, a que ele dá a si mesmo.
A Sabedoria é a Nossa Salvação
A nossa cultura é hoje muito superficial, e os nossos conhecimentos são muito perigosos, já que a nossa riqueza em mecânica contrasta com a pobreza de propósitos. O equilíbrio de espírito que hauríamos outrora na fé ardente, já se foi: depois que a ciência destruiu as bases sobrenaturais da moralidade o mundo inteiro parece consumir-se num desordenado individualismo, reflector da caótica fragmentação do nosso carácter.
Novamente somos defrontados pelo problema atormentador de Sócrates: como encontrar uma ética natural que substitua as sanções sobrenaturais já sem influência sobre a conduta do homem? Sem filosofia, sem esta visão de conjunto que unifica os propósitos e estabelece a hierarquia dos desejos, malbaratamos a nossa herança social em corrupção cínica de um lado e em loucuras revolucionárias de outro; abandonamos num momento o nosso idealismo pacífico para mergulharmos nos suicídos em massa da guerra; vemos surgir cem mil políticos e nem um só estadista; movemo-nos sobre a terra com velocidades nunca antes alcançadas mas não sabemos oara onde vamos, nem se no fim da viagem alcançaremos qualquer espécie de felicidade.
Os nossos conhecimentos destroem-nos. Embebedem-nos com o poder que nos dão. A única salvação está na sabedoria.
Manusear uma linguagem habilmente é praticar uma espécie de feitiçaria evocativa.
Pertenço àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado.
Um Único Poema
Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que não fabriquei ou instruí ou afeiçoei objectos — estas palavras não supõem o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcções o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque só se consegue isso com inocência. E se a inocência é uma condição insubstituível de escândalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui também um revés: pois há uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriámo-nos nas coisas; a inocência deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos próximos como instantâneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demoníacas, o abismo junto à dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocência — e então já não sabemos nada, por exemplo: será inocente a nossa inocência? A inocência é um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar,
Acaso
No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos…
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Sem Poesia Não Há Humanidade
Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade actual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o coração e a consciência do Universo: o sagrado coração e o santo espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente, porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor.