NĂŁo Podemos Ter a Certeza de Nada
Somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões. As ambições que demorámos anos a acreditar que alcançávamos, a pouco e pouco, a pouco e pouco, nĂŁo sĂŁo nada quando vistas de uma perspectiva apenas ligeiramente diferente. Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo Ă© visto daĂ, de onde estás. Depois, há os olhos que estĂŁo ainda mais longe dos teus e dos meus. Para esses olhos, esse tudo Ă© nada. Ou esse tudo Ă© ainda mais tudo. Ou esse tudo Ă© mil coisas vezes mil coisas que nos sĂŁo impossĂveis de compreender, apreender, porque sĂł temos uma Ăşnica vida.
— Porquê, pai?
— NĂŁo sei. Mas creio que Ă© assim. SĂł temos uma Ăşnica vida. E foi-nos dado um corpo sem respostas. E, para nos defendermos dessa indefinição, transformámos as certezas que construĂmos na nossa prĂłpria biologia. Fomos e somos capazes de acreditar que a nossa existĂŞncia dependia delas e que nĂŁo serĂamos capazes de continuar sem elas. Aquilo em que queremos acreditar corre no nosso sangue, Ă© o nosso sangue. Mas, em consciĂŞncia absoluta, nĂŁo podemos ter a certeza de nada. Nem de nada de nada, nem de nada de nada de nada. Assim, repetido atĂ© nos sentirmos ridĂculos. E sentimo-nos ridĂculos muitas vezes e, em cada uma delas, a Ăşnica razĂŁo desse ridĂculo Ă© nĂŁo conseguirmos expulsar da nossa biologia, do nosso sangue, dos nossos ĂłrgĂŁos, essas certezas injustificadas, ou justificadas por palavras sempre incompletas. Mas Ă© bom que seja assim. Porque podemos continuar e, enquanto continuamos, continuamos. Estamos vivos. Ou acreditamos que estamos vivos, o que Ă©, talvez, a mesma coisa.
— Porquê, pai?
— Porque o amor, filho.