Soneto Sonhado
Meu tudo, minha amada e minha amiga,
Eis, compendiada toda num soneto,
A minha profissão de fé e afeto,
Que à confissão, posto aos teus pés, me obriga.O que n’alma guardei de muito antiga
Experiência foi pena e ansiar inquieto.
Gosto pouco do amor ideal objeto
Só, e do amor só carnal não gosto miga.O que há melhor no amor é a iluminância.
Mas, ai de nós! não vem de nós. Viria
De onde? Dos céus?… Dos longes da distância?…Não te prometo os estos, a alegria,
A assunção… Mas em toda circunstância
Ser-te-ei sincero como a luz do dia.
Passagens sobre Pena
624 resultadosAcordar na Rua do Mundo
madrugada, passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas, no meu quarto cai o pó.um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.sirenes e buzinas, ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu, estragou-se o alarme
da joalharia, os lençóis na corda
abanam os prédios, pombos debicamo azul dos azulejos, assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravoue duma varanda um pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário
No seu ponto mais alto, a filosofia é uma criação perfeitamente similar à criação artística ou religiosa ou amorosa; quem não tem nervos de artista, força de imaginação e quem não tem ao seu dispor uma vida rica pode ser professor de Filosofia, mas duvido que chegue alguma vez aos planos em que vale realmente a pena ser filósofo.
Quando A Suprema Dor Muito Me Aperta
Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconserta.Assi, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.Porque essa própria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.Ditosa é, logo, a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
Preciso de Ti
Antes de começar… Acabei de suplicar dez minutos para este bilhete… Terrivelmente, terrivelmente vivo, dorido, e sentindo absolutamente que preciso de ti. Permiti o silêncio deliberadamente, sentindo uma grande necessidade de me retirar em mim mesmo, para escrever, e mil coisas prevalecendo.
Mudei para outra máquina, assustadora; a máquina francesa… maldita, e eu bêbedo com o desejo de te escrever. Ouve, ligo-te de manhã: esta noite ou escrevo ou rebento, mas tenho de te ver. Vejo-te brilhante e maravilhosa e ao mesmo tempo tenho estado a escrever à June e todo dividido mas tu compreenderás — tens de compreender. Vou atirar-me a uma pausa e faço uma chamada. Anais, apoia-me. Não deixes que os silêncios te preocupem: estás toda à minha volta como uma chama clara. Nada a não ser dois pontos, não encontro o ponto nem os apóstrofos. Nenhuma cópia disto também: óptimo: bêbedo… bêbedo de vida… Anais, por Cristo: se tu soubesses o que estou a sentir agora.
Isto foi [escrito] ao chegar [ao escritório]. Agora 3h20 da manhã no quarto do Fred… Toda a força desaparecida e destruída por imagens. O Fred está na cama com a Gaby do chambre 48. Está deitada como um cadáver.
Lembre-vos quão sem Mudança
Lembre-vos quão sem mudança,
Senhora, é meu querer,
perdida toda esperança;
e de mim vossa lembrança
nunca se pode perder.
Lembre-vos quão sem por quê
desconhecido me vejo;
e, com tudo, minha fé
sempre com vossa mercê,
com mais crecido desejo.Lembre-vos que se passaram
muitos tempos, muitos dias,
todos meus bens se acabaram,
com tudo, nunca mudaram;
querer-vos, minhas porfias.
Lembre-vos quanta rezão
tive pera esquecer-vos,
e sempre meu coração,
quanto menos galardão,
tanto mais firme em querer-vos.Lembre-vos que, sem mudar
o querer desta vontade,
me haveis sempre de lembrar,
té de todo me acabar,
vós e vossa saudade.
Lembre-vos como pagais
o tempo que me deveis,
olhai quão mal me tratais:
Sam o que vos quero mais,
o que menos vós quereis.Lembre-vos tempo passado,
não porque de lembrar seja,
mas vereis quão magoado
devo de ser c’o cuidado
do que minha alma deseja.
Lembre-vos minha firmeza,
de vós tão desconhecida,
lembre-vos vossa crueza,
junta com minha tristeza,
Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente
Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,
Não te Arrependas
Não te arrependas, Amada, porque a mim tão depressa
te deste!
Podes crer, nem por isso de ti penso coisas insolentes
e vis!
Vária é a acção das setas do Amor: algumas arranham,
E do rastejante veneno languesce pra anos o peito.
Mas, com penas potentes e gume afiado de fresco,
Outras penetram até ao tutano e rápido inflamam
o sangue.
Nos tempos heróicos, quando Deuses e Deusas amavam,
Ao olhar seguia o desejo, ao desejo o prazer.
Crês tu que a Deusa do Amor pensou muito tempo
Quando no bosque de Ida um dia Anquises lhe
agradou?
Se Luna tardasse a beijar o belo dormente,
Auiora, invejosa, em breve o teria acordado.
Hero descobriu Leandro no festim ruidoso, e ligeiro,
Ardente saltou o amante pra a corrente nocturna.
Rhea Sílvia, a virgem princesa, vai descuidosa
Buscar água ao Tibre, e o Deus dela se apossa.
Assim Marte gerou os seus filhos! — Uma loba
amamenta
Os Gémeos, e Roma nomeia-se princesa do mundo.Tradução de Paulo Quintela
A educação é uma coisa admirável, mas é bom recordar que nada do que vale a pena saber pode ser ensinado.
A única coisa que vale a pena é fixar o olhar com mais atenção no presente; o futuro chegará sozinho, inesperadamente. É tolo quem pensa no futuro antes de pensar no presente.
Lágrima
Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tantoTenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigoSe considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile no chão
E deixo-me adormecerSe eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria matar
A Vida é uma Eternidade
Sabemos que vamos morrer e que estaremos mortos tanto tempo como não estivemos à espera para nascer. É banal dizer-se que a vida é um intervalo ou uma passagem ou um instante. Não é. A vida é uma excepção generosamente comprida à regra nem triste nem alegre da inexistência.
A vida está para o nada como o planeta Terra está para o sistema solar a que pertence. Sim, pode haver vida noutros planetas. Mas será uma vida que vale a pena viver? Ou que apenas vale a pena estudar?Sabemos que temos muito tempo de vida: muito mais do que precisamos. O direito à preguiça e à procrastinação está consagrado na nossa vida e faz logo, à partida, parte dela.
Sabemos que somos obrigados a pensar, errada e repetidamente, que o tempo em que estamos vivos é importante. E que as nossas noções de declínio (“dantes é que era bom; os jovens de hoje não sabem o que perdem”) são lugares-comuns de todas as gerações antes de nós.Sabemos que não há ninguém que não envelheça, desde o bebé que nasceu neste segundo até ao velho que, por ter morrido agora mesmo, deixou de envelhecer.
São Plácidas Todas as Horas que Nós Perdemos
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza…À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
O Lutador
Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda sorte,
Venceu o monstro de desmedido porte
– A ululante Quimera espavorida!Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado.E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!
A educação (…) criou uma vasta população capaz de ler, mas incapaz de reconhecer o que vale a pena ser lido.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.
Um Poema Que Se Perdeu
Hoje o dia é um dia chuvoso e triste
amortalhado
Naquela monotonia doente dos grandes dias.Hoje o dia…
(a pena caiu-me das mãos)Acabou-se o poema no papel.
Cá por dentro
Continua…Oh! este marulhar das almas no silêncio!
Ó Mãe
Ó mãe, regressa a mim. Embala-me no tempo em que os teus lábios rebentavam de ternura. Ó mãe, ó minha mãe, ó rio de água pura, correndo pelas veias. Pelo vento.
Ó mãe, que és mãe de Deus, que és mãe de mim e mãe de Antero e de Camões, e mãe de quem lhe faltam as palavras como se faltasse o ar. E são assim uma espécie de filhos de ninguém. Abre o teu ventre, mãe. Acorda. Vem parir-me. E vem sofrer a minha dor uma vez mais. Morrer de amor por mim. Vem impedir-me o medo. Ensinar-me a amar a luz dos animais.
Ó mãe, ó minha mãe. Ó pátria. Ó minha pena. Que me pariste, assim, temperamental. Mãe de Ulisses, de Guevara e mãe de Helena. E mãe da minha dor universal.
Diferente
Buscando o vão Ideal que me seduz,
Sem que o atinja me disperso e gasto,
E ansiosamente aos braços duma cruz
Ergo o perfil de iluminado e casto.Já tristemente desdenhoso afasto
O manto de burel dos ombros nus;
E a noite pisa a forma do meu rasto,
Se deixo atrás de mim passos de luz.Na minha tez suave e nazarena,
Transparecem vislumbres dessa pena
Que Deus pelos estranhos hà sentido…E frio e calmo, a divergir da Raça,
Mal poiso os lábios no cristal da taça
Por onde as outras almas têm bebido!
Quero pegar, sentir, tocar. E tudo isso já faz parte de um mistério. Isso lhe assusta? Mas vale a pena. Mesmo que doa. Dói só no começo.