Vou afastar-me de toda a gente até ao ponto de perder a consciência. Fazer de todos um inimigo, não falar com ninguém.
Passagens sobre Pontos
609 resultadosA Felicidade não Tem Medida
Não duvidas de que a vida feliz seja o supremo bem; logo, se a vida possui o supremo bem, então é sumamente feliz. E tal como o supremo bem não pode receber qualquer acréscimo (o que haveria acima do supremo?!), também a vida feliz o não pode, pois a felicidade não existe sem o supremo bem. Repara: se disseres que alguém é “mais” feliz, tornarás possível que se diga também “muito mais”; e assim irás fazendo inúmeras gradações no supremo bem, quando por “sumo bem” eu entendo tudo o que não tem valor algum acima de si. Se alguém é menos feliz do que um outro, segue-se que preferirá a vida desse outro (por ser mais feliz) à sua própria; ora, um homem feliz não considera nada preferível à sua vida.
Qualquer destas duas situações é inaceitável: existir algo que o homem feliz preferiria ter em lugar daquilo que tem, ou não preferir ter algo que seja melhor do que aquilo que tem. De facto, quanto mais um homem é avisado, tanto mais se procurará chegar ao que há de melhor, e ambicionará alcançá-lo seja de que modo for. Ora, como pode ser feliz alguém que pode, que deve mesmo,
Maio de Minha Mãe
O primeiro de Maio de minha Mãe
Não era social, mas de favas e giestas.
Uma cadeira de pau, flor dos dedos do Avô
— Polimento, esquadria, engrade, olhá-la ao longe —
Dava assento a Florália, o meu primeiro amor.Já não se usa poesia descritiva,
Mas como hei-de falar da Maromba de Maio
Ou, se era macho, do litro de vinho na sua mão?
O primeiro de Maio nas Ilhas, morno como uma rosa,
Algodoado de cúmulos, lento no mar e rapioqueiro
Como Baco em Camões,
Límpido de azeviche
E, afinal de contas, do ponto de vista proletário,
Mais de mãos na algibeira do que Lenine em Zurich.
(Porque foi por esta época: eu é que não sabia!)A minha Maromba tinha barriga de palha como as massas
E a foice roçadoira da erva das cabras do Ribeiro
Que se pegou, esquecida, no banco do martelo de meu Avô
Cujas quedas iguais, gravíficas, profundasMuito prego em cunhal deixaram,
Muita madeira emalhetaram,
Muita estrela atraíram ao bico da foice do Ribeiro
Nas noites de luar em que roçava erva às cabras.
Só vale a pena discutir com as pessoas com as quais já estamos de acordo quanto aos pontos fundamentais; só aí se mantém, na pesquisa, a fraternidade essencial; tudo o resto é concorrência, batalha, luta pelo triunfo; não menos reais por serem disfarçados.
Fazer Cumprir quem não Cumpre
Sistemáticamente usados, o adiamento, a prorrogação, a isenção, a dispensa dos preceitos legais têm a tal ponto deseducado o espírito público que a maior parte da gente não acredita que a lei venha a ser cumprida ao menos «tão inteiramente como nela se contém». Do uso e abuso de tais processos resulta que no nosso País quem se apressa a cumprir a lei, a cumpri-la rigorosamente, lisamente, a fazer uma declaração exacta e em devido tempo, fica sempre em condições inferiores a todos os outros que não fizeram o mesmo. Pois é absolutamente preciso, «por uma questão de educação e de ordem», que comecemos de vez a praticar o sistema inverso e a fazer com que quem não cumpre — por mais razoável que seja o motivo da falta —- fique em situação pior que os que cumprem.
Tempo e Idade
A jovialidade e a coragem da vida, características da juventude, devem-se em parte ao facto de estarmos a subir a colina, sem ver a morte situada no sopé do outro lado. Porém, ao transpormos o cume, avistamos de facto a morte, até então conhecida só de ouvir dizer. Ora, como ao mesmo tempo a força vital começa a diminuir, a coragem também decresce, de modo que, nesse momento, uma seriedade sombria reprime a audácia juvenil e estampa-se no nosso rosto. Enquanto somos jovens, digam o que quiserem, consideramos a vida como sem fim e usamos o nosso tempo com prodigalidade. Contudo, quanto mais velhos ficamos, mais o economizamos. Na velhice, cada dia vivido desperta uma sensação semelhante à do delinquente ao dirigir-se ao julgamento.
Do ponto de vista da juventude, a vida é um futuro infinitamente longo; do da velhice, é um passado bastante breve. Desse modo, o começo apresenta-se-nos como as coisas ao serem vistas pela lente objectiva do binóculo de opera; o fim, entretanto, como se vistas pela ocular. É preciso ter envelhecido, portanto ter vivido muito, para reconhecer como a vida é breve. O próprio tempo, na juventude, dá passos bem mais lentos. Por conseguinte, o primeiro quartel da vida é não só o mais feliz,
Num determinado ponto da vida, a beleza do mundo torna-se suficiente. Já não precisas de fotografar, pintar, ou até recordar. É suficiente.
Virtudes dos Jovens e dos Velhos
Os jovens são mais aptos para inventar do que para julgar, para executar do que para aconselhar, para os novos projectos do que os negócios estabilizados. Porque a experiência da idade, nas coisas que quadram os velhos, dirige-os, mas engana-os nas coisas que aparecem de novo. Os erros dos jovens causam a ruína dos negócios; mas os erros dos velhos limitam-se ao que deveria ser feito de novo, ou mais cedo.
Os jovens, na condução e na economia dos negócios, têm ampla visão das coisas que não podem dominar, agitam mais do que apaziguam, voam rapidamente para os fins sem consideração dos meios e dos graus; conduzem os poucos princípios, que por acaso acolheram, até ao absurdo; não receiam inovar, o que traz desconhecidos inconvenientes, usam de princípio os remédios extremos, e, o que duplica todos os erros, não querem reconhecer-se nem retratar-se, como o cavalo mal ensinado que não quer parar nem retroceder.
Os homens de idade objectam muito, consultam muito, aventuram-se pouco, arrependem-se depressa, raras vezes conduzem os negócios ao grau de plenitude, porque se contentam com a mediocridade no êxito.
Certamente, é proveitoso combinar o emprego de novos e velhos: será vantajoso para o presente,
Amar é arriscar. Tudo.
O amor é algo extraordinário e muito raro. Ao contrário do que se pensa não é universal, não está ao alcance de todos, muito poucos o mantêm aqui. Chama-se amor a muita coisa, desde todos os seus fingimentos até ao seu contrário: o egoísmo.
A banalidade do gosto de ti porque gostas de mim é uma aberração intelectual e um sentimento mesquinho. Negócio estranho de contabilidade organizada. Amar na verdade, amar, é algo que poucos aguentam, prefere-se mudar o conceito de amor a trocar as voltas à vida quando esta parece tão confortável.
Amar é dar a vida a um outro. A sua. A única. Arriscar tudo. Tudo. A magnífica beleza do amor reside na total ausência de planos de contingência. Quando se ama, entrega-se a vida toda, ali, desprotegido, correndo o tremendo risco de ficar completamente só, assumindo-o com coragem e dando um passo adiante. Por isso a morte pode tão pouco diante do amor. Quase nada. Ama-se por cima da morte, porquanto o fim não é o momento em que as coisas se separam, mas o ponto em que acabam.Não é por respirar que estamos vivos, mas é por não amar que estamos mortos.
Em Tudo o que Fiz Bem Pus um Pouco de Ti
Eis o teu rosto iluminado por esta hora de maio.
Ao filho autêntico, basta fechar os olhos para encontrar o rosto da sua mãe.
A fronteira que separa o dentro do fora é vaga de propósito, mais exata é a fronteira dos meses.
Mãe, as tardes de maio não são um acaso.
Pus um pouco de ti naquilo que fiz de mais importante.
Onde existir terra estás tu, dás força e horizonte.
O ar não permitiria respiração se não te contivesse.
A água não seria capaz de alimentar sem a tua presença líquida.
O fogo não chegaria a acender se não incluísse o teu mistério no seu mistério.
Estavas já no primeiro início do firmamento, nesse rugido que encheu a superfície do céu e da terra, que rasgou as trevas; da mesma maneira, estarás no seu último fim.
Estás antes e depois.
Estás na lenta passagem da eternidade.
Mãe, atravessas a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam.
Sabes que criei tudo o que há e sabes também que não criei tudo o que poderia haver.
Entre as faltas evidentes,
O Amor em Portugal
Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal. Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: «I love you» ou «Je t’aime». As perguntas «Amas-me?» ou «Será que me amas?» estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.
O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro, ou giríssimo.
O Tempo Vivido
Para mim, filosoficamente (se posso ter a pretensão de usar tal palavra), o presente não existe. Só o tempo passado é que é tempo «reconhecível» — o tempo que «vem», porque «vai», não se detém, não fica presente. Portanto, para o escritor que eu sou, não se trata de «recuperar» o passado, e muito menos de querer fazer dele lição do presente. O tempo vivido (e apenas ele, do ponto de vista humano, é tempo «de facto») apresenta-se unificado ao nosso entendimento, simultaneamente completo e em crescimento contínuo. Desse tempo que assim se vai acumulando é que somos o produto infalível, não de um inapreensível presente.
Eu também queria escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando uma dor física passa. De como o corpo agradecido, ainda arfando, vê a que ponto a alma é também corpo.
Conhecer-se é Errar
O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra.
Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse «Conhece-te» propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas,
O Paradoxo da Sociedade totalmente Livre
A pessoa ou instituição que encarregamos de nos tornar felizes têm o direito de se queixarem se lhes recordarmos que, apesar de tudo, continuamos livres e senhores de recalcitrar. Tudo o que não conseguimos realizar sós, diminui a nossa liberdade. O doente nas mãos do médico é como a sociedade nas mãos do salvador – herói ou partido.
Como? Encarregamo-nos de organizar a sociedade – isto é, vós próprios, e depois, pretendeis continuar livres.
Precisamente porque não existe sociedade económica pura, toda a organização científica da economia contém em si a afirmação de uma mística – quer dizer, um credo estatal que atinge também a vida interior, e, assim como o organizador deve eliminar toda a heterodoxia económica, terá igualmente de eliminar as heterodoxias interiores.
Uma sociedade inteiramente orientada do ponto de vista económico e totalmente livre espiritualmente é uma contradição.
O Comportamento Simbólico e o Comportamento Inequívoco
Na verdade, encontramos desde as origens da história humana estas duas formas de comportamento, a simbólica e a inequívoca. O ponto de vista do inequívoco é a lei do pensamento e da acção despertos, que domina quer uma conclusão irrefutável da lógica quer o cérebro de um chantagista que pressiona passo a passo a sua vítima, uma lei que resulta das necessidades da vida, às quais sucumbiríamos se não fosse possível dar uma forma inequívoca às coisas. O símbolo, por seu lado, é a articulação de ideias próprias do sonho, é a lógica deslizante da alma, a que corresponde o parentesco das coisas nas intuições da arte e da religião; mas também tudo o que na vida existe de vulgares inclinações e aversões, de concordância e repulsa, de admiração, submissão, liderança, imitação e seus contrários, todas estas relações do homem consigo e com a natureza, que ainda não são puramente objectivas e talvez nunca venham a sê-lo, só podem ser entendidas em termos simbólicos.
Aquilo a que se chama a humanidade superior mais não é, com certeza, do que a tentativa de fundir estas duas metades da vida, a do símbolo e a da verdade, cuidadosamente separadas antes. Mas quando separamos num símbolo tudo aquilo que talvez possa ser verdadeiro do que é apenas espuma,
No ponto de partida não pode haver outra verdade além desta: «penso, logo existo», esta é a verdade absoluta da consciência alcançando-se a si mesma.
Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um.
A Verdadeira Conversa
O sinal de uma verdadeira conversa está em que os ditos espirituosos dificilmente podem ser transportados com todo o seu brilho para fora do círculo dos íntimos. Para conservarem toda a sua força, devem aparecer numa biografia juntamente com o retrato de quem os profere. Uma boa conversa é teatral; é como uma representação improvisada onde cada um se deve apresentar na sua melhor forma; e o melhor género de conversa é aquele onde cada participante se mostra mais completa e sinceramente ele mesmo e onde, se invertêssemos as réplicas, se perderia totalmente o sentido e a clareza.
(…) A maior parte de nós, proteiforme que é o ser humano, pode falar com toda a gente até certo ponto; mas a verdadeira conversa, que a anima a melhor parte de nós mesmos, tantas vezes apagada, acontece apenas com as nossas almas gémeas; encontra-se tão profundamente ancorada quanto o amor na constituição do nosso ser, e devemos saboreá-la com toda a energia de que dispusermos e estar-lhes gratos para todo o sempre.
Retomo ao Ponto de Partida
Retomo, pois, ao ponto de partida
como um presente, o ponto de chegada.
Entre um começo e outro não há nada
Excepto o nada da vida vivida.Desgaste, corrosão do que de novo
em velho se mudou antes de o ser,
etc.