Textos sobre Dia

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Textos de dia escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Solidão do Artista

Diz-se às vezes de certas pessoas, e para isso se reprovar, que têm dupla personalidade. Mas dupla ou múltipla têm-na normalmente os artistas. Ela é pelo menos a do convívio exterior e a do seu intimismo. Se trazem esta para a rua, são quase sempre insuportáveis. Só se suporta o que é de um profundo interesse, quando isso é rentável. Imagino que o capitalista tenha na sua vida íntima um mundo de cifrões. Se o cifrão vier à rua, tem ainda cotação. Mas o artista? Mesmo a coisa minúscula da sua pequena vaidade é irritante. Um político pode blasonar pimponice, que tem adeptos a aplaudir. O artista é um condenado, com o ferrete da ignomínia. O seu dever social é ocultar a degradação ou então marginalizar-se. Para efeitos cívicos ou mundanos, só depois de bem morto. A solidão é assim o seu destino. Aí sofre ou tem alegrias, aí obedece a um estranho mandato que lhe passaram na eternidade. Discreto, envergonhado, todo o seu esforço, no domínio das relações, é esconder a sua mancha. Nenhum povo existe senão pelo seu espírito. Somos o que somos pelo que foi excepção dos que nos precederam. Mas o dia a dia não é espiritual,

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Caridade Hipócrita

Nos últimos tempos, preocupava-o sobretudo as misérias das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornavam mais secas e menos capazes de piedade.
«A Fraternidade (dizia ele numa carta de 1886, que conservo) vai-se sumindo, principalmente nestas vastas colmeias de cal e pedra onde os homens teimam em se amontoar e lutar; e, através do constante deperecimento dos costumes e das simplicidades rurais, o Mundo vai rolando a um egoísmo feroz. A primeira evidência deste egoísmo é o desenvolvimento ruidoso da filantropia. Desde que a caridade se organiza e se consolida em instituição, com regulamentos, relatórios, comités, sessões, um presidente e uma campainha, e do sentimento natural passa a função oficial – é porque o homem, não contando já com os impulsos do seu coração, necessita obrigar-se publicamente ao bem pelas prescrições dum estatuto.Com os corações assim duros e os Invernos tão longos, que vai ser dos pobres?…»

Plano de Vida

Um plano geral para a vida deve implicar, antes de mais, alcançar-se qualquer forma de estabilidade financeira. Marquei como limite para essa coisa humilde a que chamo estabilidade financeira cerca de sessenta dólares—quarenta para o necessário, e vinte para as coisas supérfluas da vida. A forma de o alcançar é adicionar aos trinta e um dólares dos dois escritórios (P & FF) vinte e nove dólares de proveniência a determinar. Em rigor, para viver apenas, cinquenta dólares bastariam, pois, tomando trinta e cinco como base necessária, quinze já davam para o resto.

A coisa essencial que vem logo a seguir é residir numa casa com bastante espaço, espaço quanto a divisões e divisões com os requisitos necessários, para arrumar todos os meus papéis e livros na devida ordem; e tudo isto sem grande possibilidade de me mudar dentro de pouco tempo. Parece que o mais fácil seria alugar eu próprio uma casa — à base de, suponhamos, oito ou, quando muito, nove dólares — e viver lá à vontade, combinando que me levassem o jantar (e o pequeno-almoço) todos os dias, ou coisa parecida. Mas seria este sistema absolutamente conveniente?

Substituir, no tocante à ordem dos papéis,

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As Mães

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catania, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias,

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O Mal dos Povos

O mal dos povos, o mal de nós todos, é só aparecermos à luz do dia no carnaval, seja o propriamente dito, seja a revolução. Talvez a solução se encontrasse numa boa e irremovível palavra-de-ordem: povo que desceu à rua, da rua não sai mais. Porque a luta foi sempre entre duas paciências: a do povo e a do poder. A paciência do povo é infinita, e negativa por não ser mais do que isso, ao passo que a paciência do poder, sendo igualmente infinita, apresenta a «positividade» de saber esperar e preparar os regressos quando o poder, acidentalmente, foi derrotado. Veja-se, para não ir mais longe, o caso recente de Portugal.

Pai, Quero que Saibas

É o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és.

Uma Completa Fome por Ti

Anais,

Não esperes que continue são. Não vamos ser sensatos. Foi um casamento, em Louveciennes — não podes negá-lo. Voltei com pedaços de ti pegados a mim. Estou a andar, a nadar num oceano de sangue, o teu sangue andaluz, destilado e venenoso. Tudo o que faço e digo e penso tem a ver com o casamento. Vi-te como a senhora do teu lar, uma moura de cara pesada, uma negra com um corpo branco, olhos por toda a tua pele, mulher, mulher, mulher. Não consigo ver como conseguirei viver longe de ti — estas interrupções são uma morte. Como te pareceu quando o Hugo voltou? Eu continuava aí? Não consigo imaginar-te a moveres-te com ele como fizeste comigo. Pernas fechadas. Fragilidade. Doce, traiçoeira aquiescência. Docilidade de pássaro. Tornaste-te uma mulher comigo. Isso quase me aterrorizou. Não tens só trinta anos de idade… Tens mil anos de idade.

Aqui estou de volta e ainda fervilhando de paixão, como vinho a fermentar. Não uma paixão apenas da carne, mas uma completa fome por ti, uma fome devoradora. Leio no jornal acerca de suicídios e homicídios e compreendo-o perfeitamente. Sinto-me assassino, suicida. Sinto talvez ser uma desgraça nada fazer,

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O Ideal Português como Ideal para o Mundo

Três pontos, segundo Camões, sobre os quais temos que meditar, e ver como é. Ponto número 1: é preciso que os corpos se apaziguem para que a cabeça possa estar livre para entender o mundo à volta. Enquanto nós estamos perturbados com existir um corpo que temos que alimentar, temos que fartar, que temos de tratar o melhor possível, cometendo para isso muitas coisas extremamente difíceis, nessa altura, quando a nossa cabeça estiver inteiramente livre e límpida, nós podemos ouvir aquilo que Camões chama «a voz da deusa». E que faz a voz da deusa? Arranca àqueles marinheiros as limitações do tempo e as limitações do espaço. Arranca-os às limitações do tempo o que faz que eles saibam qual vai ser o futuro de Portugal. E arranca-os às limitações do espaço porque eles vêem todo o mundo ao longe, o universo que está ao longe, a deusa lho mostra, embora com o sistema errado, digamos assim, ou imperfeito, de Ptolomeu, e eles estão portanto inteiramente fora do espaço. Aquilo que foi o ideal dos gregos, e que os gregos nunca conseguiram realizar. Então o que é que aconteceu? Aconteceu que um dia houve outro português que tinha ido para o Brasil,

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Os Elementos Fixadores da Personalidade

Os resíduos ancestrais formam a camada mais profunda e mais estável do carácter dos indivíduos e dos povos. É pelo seu “eu” ancestral que um inglês, um francês, um chinês, diferem tão profundamente.
Mas a esses remotos atavismos sobrepõem-se elementos suscitados pelo meio social (casta, classe, profissão, etc.), pela educação e ainda por muitas outras influências. Eles imprimem à nossa personalidade uma orientação assaz constante. Será o “eu”, um pouco artificial, assim formado, que exteriorizaremos cada dia.
Entre todos os elementos formadores da personalidade, o mais activo, depois da raça, é o que determina o agrupamento social ao qual pertencemos. Fundidas no mesmo molde pelas idéias, as opiniões e as condutas semelhantes que lhes são impostas, as individualidades de um grupo: militares, magistrados, padres, operários, marinheiros, etc., apresentam numerosos carácteres idênticos.
As suas opiniões e os seus juízos são, em geral, vizinhos, porquanto sendo cada grupo social muito nivelador, a originalidade não é tolerada nele. Aquele que se quer diferenciar do seu grupo tem-no inteiramente por inimigo.
Essa tirania dos grupos sociais, na qual insistiremos, não é inútil. Se os homens não tivessem por guia as opiniões e a maneira de proceder daqueles que os cercam,

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A Doce Incerteza do Romance

Não vejo nada de romântico numa proposta de noivado. É certo que é romântico uma pessoa estar apaixonada. Mas numa proposta concreta não há romance nenhum; podemos até vir a ser aceites, e na grande maioria dos casos é isso que acontece, segundo creio, cessando nesse momento qualquer excitação. A própria essência do romance é a incerteza. Se algum dia me casar, farei tudo para me esquecer desse facto.

Cada Vez Nos Casamos Mais

Ao fim de 14 anos, cada vez que eu olho para a minha mulher, cada dia que acordo ao lado dela, o que mais me comove e impressiona é precisamente a novidade de vê-la, poder amá-la, ter a sorte de ser amado por ela.
Cada coisa que fazemos é ao mesmo tempo antiquíssima – como uma cerimónia que construímos juntos só para nós os dois – e novíssima, pelo desejo e pelo entusiasmo de lá estar, naquele lugar que ela abriu para mim e ela no lugar que só é dela, que sou eu.

O casamento é só uma palavra: é verdade. Mas também pode ser a vontade de casarmos e ficarmos casados, todos os dias, com a mesma pessoa que amamos.
Cada vez nos casamos mais. As diferenças dela vão cabendo cada vez melhor nas minhas. Cada vez somos, a Maria João e eu, mais livres de sermos como somos, cada um de nós, e de sermos como somos, nós os dois.
Ela torna-se mais ela; eu torno-me mais eu, ela e eu com menos medo que o outro fuja por causa disso. Mas com medo à mesma. E ganância de viver e curiosidade em saber como é que o décimo quinto ano vai ser melhor do que este.

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Prometo Falhar

Prometo amar-te até ao limite, beijar-te até à última fronteira, correr quando bastava andar, saltar quando bastava correr, voar quando bastava saltar. Prometo abraçar-te com o interior dos ossos, percorrer-te a carne com a fome absoluta, e ir à procura do orgasmo todos os dias, a toda a hora, encontrar a felicidade no doce absurdo que nos soubermos destinar. Prometo falhar. Sem hesitar. Prometo ser humano, aqui e ali ser incoerente, aqui e ali dizer a palavra errada, a frase errada, até o texto errado, aqui e ali agir sem pensar, para que raios serve pensar quando te amo tão desalmadamente assim? Prometo compreender, prometo querer, prometo acreditar. Prometo insistir, prometo lutar, descobrir, aprender, ensinar. Tudo para te dizer que prometo falhar. E Deus te livre de não me prometeres o mesmo.

Estamos Atados, Filho

Levar-vos-ei sempre comigo. Olho de frente o último raio de sol antes de o sol desaparecer. Penso: um homem é um dia, um homem é o sol durante um dia. E é preciso continuar. Avançam os meus pés sobre a terra. Filho, dormes ainda, e quis mostrar-te o sol-pôr. Quis mostrar-te a terra, ensinar-te a cor da terra por dentro, porque quem conhece a cor da terra por dentro conhece o mundo e os homens. Filho, o sol desapareceu agora e deixou uma aura vermelha de sangue à volta do cabeço onde entrou, e quis ensinar-te que amanhã estará calor. Quis ensinar-te que, se não vires as estrelas de noite, espera chuva no dia seguinte. E saberes isto é saberes tudo. São estas as poucas coisas que nos dão a saber. O resto, filho, são mistérios sem explicação. O resto são punhais apontados dentro do nevoeiro. O resto são punhais que vemos aproximarem-se do nosso peito, e estamos atados, filho.

A Crise da Indiferença e do Desalento

Hoje mais do que nunca, nesta hora angustiosa que atravessa o País, mantenho os Meus indiscutíveis direitos ao Trono de Meus Maiores. (…) Politicamente: a desunião, a anarquia e o terror, verdadeiras significações do bolchevismo. Economicamente: a fome a bater à porta dos pobres especialmente, a fome a aliada mais poderosa da desordem. Financeiramente: a ruína que cada dia se aproxima, pois basta ver o que são hoje a nossa circulação fiduciária, a nossa dívida e o descrédito do dinheiro português. Na nossa situação internacional melhor é nem falar, tão graves são as apreensões que acerca dela surgem de todos os lados. Por cima de todas estas coisas, há uma outra pior ainda, se possível é: a crise da indiferença e do desalento! (…) Não abdicamos dos nossos princípios, pois representam aqueles que durante séculos fizeram a glória de Portugal, mas quando vemos o nosso País afundar-se é nosso dever oferecer à Mãe Pátria os nossos serviços para a socorrer.

A Nossa Vida é Estilhaçada pelo Pormenor

Vivemos mesquinhamente, quais formigas, ainda que a fábula nos relate que há muito tempo atrás fomos transformados em homens; como os pigmeus lutamos com gruas; e é erro sobre erro, remendo sobre remendo, e a nossa melhor virtude decorre de uma miséria supérflua e evitável. A nossa vida é estilhaçada pelo pormenor.
Um homem honesto dificilmente precisa de contar para além dos seus dez dedos das mãos, acrescentando, em caso extremo, os seus dez dedos dos pés, e o resto que se amontoe. Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo: ocupai-vos de dois ou três afazeres, e não de cem ou mil; contai meia dúzia em vez de um milhão e tomai nota das receitas e despesas na ponta do polegar. A meio do agitado mar da vida civilizada, tantas são as nuvens, as tempestades, as areias movediças, tantos são os mil e um imprevistos a ser levados em conta, que para não se afundar, para não ir a pique antes de chegar ao porto, um homem tem de ser um grande calculista para lograr êxito.
Simplificar, simplificar, simplificar. Em vez de três refeições por dia, se preciso for, comer apenas uma; em vez de cem pratos, cinco; e reduzir proporcionalmente as outras coisas.

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O Construtor

O construtor, antes de levantar a primeira pedra do dia, contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de construir, com a sua própria substância de cinzas e sangue petrificado, a habitação em que a fénix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro. Nada mais lhe resta do que lançar-se a um trabalho para o qual a disposição ainda não surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada. A construção está envolta numa espessa bruma e não há nela sinais de figuras ou formas, porque essa névoa é o próprio nada da confusão inicial e do fim de toda a construção como possibilidade de vida e de renovo. É do obscuro fundo da retina que surge um ténue raio cintilante que penetra na massa nebulosa da construção e a faz palpitar e estremecer. O construtor poderá então discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação. Haverá um momento em que ele sentirá que o edifício dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima. De algum modo, é já a fénix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mútua criação.

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Parábola do Homem Sábio

Um dia um homem sábio morreu. No reino dos céus encontrou-se face a face com o Senhor Deus. Este perguntou-lhe:
“Tu, que és sábio e viveste inúmeros anos, diz-me o que aprendeste de realmente importante.”
Respondeu o homem sábio:
“Uma só coisa aprendi de realmente importante: a ignorar os mestres.”
O Senhor Deus olhou-o num demorado silêncio.
Depois voltou-lhe as costas e foi-se embora.

Alma e Realidade, Duas Paisagens Sobrepostas

1 – Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 – Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E – mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem – pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 – Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem,

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Os Homens sem Pé no seu Tempo

Das coisas tristes que o mundo tem, são os homens sem pé no seu tempo. Os desgraçados que aparecem assim, cedo de mais ou tarde de mais, lembram-me na vida terras de ninguém, onde não há paz possível. Imagine-se a dramática situação dum cavernícola transportado aos dias de hoje, ou vice-versa. A cada época corresponde um certo tipo humano. Um tipo humano intransponível, feito da unidade possível em tal ocasião, moldado psicològicamente, e fisiològicamente até, pelas forças que o rodeiam. A Idade Média tinha como valores Aristóteles e os doutores da Igreja. E qualquer espírito coevo, por mais alto que fosse, estava irremediàvelmente emparedado entre a Grécia sem Platão e as colunas do Templo. De nada lhe valia sonhar outro espaço de movimento. Cada inquietação realizava-se ali. O que seria, pois, um Vinci do Renascimento, multímodo, aberto a todos os conhecimentos, a bracejar dentro de tão acanhados muros?

Neste trágico século vinte, sem qualquer sério conteúdo ideológico, sem nenhuma espécie de grandeza fora do visceral e do somático, todo feito de records orgânicos e de conquistas dimensionais, que serenidade interior poderá ter alguém alicerçado em valores religiosos, estéticos, morais, ou outros? Nenhuma. Entre o abismo da sua impossibilidade natural de deixar de ser o que é,

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A Alegoria da Caverna

– Imagina agora o estado da natureza humana com respeito à ciência e à ignorância, conforme o quadro que dele vou esboçar. Imagina uma caverna subterrânea que tem a toda a sua largura uma abertura por onde entra livremente a luz e, nessa caverna, homens agrilhoados desde a infância, de tal modo que não possam mudar de lugar nem volver a cabeça devido às cadeias que lhes prendem as pernas e o tronco, podendo tão-só ver aquilo que se encontra diante deles. Nas suas costas, a certa distância e a certa altura, existe um fogo cujo fulgor os ilumina, e entre esse fogo e os prisioneiros depara-se um caminho dificilmente acessível. Ao lado desse caminho, imagina uma parede semelhante a esses tapumes que os charlatães de feita colocam entre si e os espectadores para esconder destes o jogo e os truques secretos das maravilhas que exibem.
– Estou a imaginar tudo isso.
– Imagina homens que passem para além da parede, carregando objectos de todas as espécies ou pedra, figuras de homens e animais de madeira ou de pedra, de tal modo que tudo isso apareça por cima do muro. Os que tal transportam, ou falam uns com os outros,

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