Textos sobre Memórias

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Textos de memórias escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Sou a Tua Casa

Sou a tua casa, a tua rua, a tua segurança, o teu destino. Sou a maçã que comes e a roupa que vestes. Sou o degrau por onde sobes, o copo por onde bebes, o teu riso e o teu choro, o teu frio e a tua lareira. O pedinte que ajudas, o asilo que te quer acolher. Sou o teu pensamento, a tua recordação, a tua vontade. E também o artesão que para ti trabalha, o medo que te perturba e o cão que te guia quando entras pela noite. Sou o sítio onde descansas, a árvore que te dá sombra, o vento que contigo se comove. Sou o teu corpo, o teu espírito, o teu brilho, a tua dúvida. Sou a tua mãe, o teu amante, o marfim dos teus dentes. E sou, na luz do outono, o teu olhar. Sou a tua parteira e a tua lápide. Os teus vinte anos. O coração sepultado em ti. Sou as tuas asas, a tua liberdade, e tudo o que se move no teu interior. Sou a tua ressaca, o teu transtorno, o relógio que mede o tempo que te resta. Sou a tua memória, a memória da tua memória,

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O Homem Deformado pela Sociedade

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão apostas actuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe,

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Conquista e Governação

Quando os estados que se conquistam têm a tradição de viver segundo as suas leis e em liberdade, para a sua conservação existem três opções: a primeira é a sua destruição; a segunda é ir para lá viver o príncipe conquistador; e a terceira consiste em deixá-los viver de acordo com as suas leis, mas exigindo-lhes um tributo e criando no seu seio uma oligarquia que vos garanta a sua fidelidade. Porque, sendo este novo poder uma criação daquele príncipe, sabem os seus mandatários que não podem sobreviver sem a sua amizade e apoio, tudo havendo de fazer para manter o novo regime. E mais facilmente se conserva uma cidade habituada a viver livre através do consenso dos seus cidadãos do que de qualquer outro modo.
(…) Na verdade, o único modo seguro de conservar uma cidade conquistada é a sua destruição. Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre e a não desfaça, pode preparar-se para ser por ela desfeito, porque sempre encontrarão grande receptividade no seio da rebelião a recordação da liberdade e das antigas instituições, as quais nem pela acção do tempo nem pela concessão de benesses se apagarão da sua memória. O que quer que se faça ou se disponha,

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A Ambição de Eternidade

Fazer… A memória dos deuses, agora que se nos desfez como forma de um refúgio, de uma justificação, reinventa em nós o sonho do seu poder: criar é afirmar no homem o sonho de divinização. Criar um império, uma obra de arte, um filho, um arranjo de saber, um novo apara-lápis… E à ambição de impor ao mundo uma nova ordem, ao desejo angustiado de nos furtarmos a um domínio universal, de nos afirmarmos únicos, nós juntamos a pequena ambição de sermos eternos.

Como se a nossa vida não fosse irredutível e o objecto que se desprende das nossas mãos, comparticipando da nossa presença, do calor do nosso sangue, comparticipasse também da nossa consciência… Mas a pessoa que somos e sabemos, a presença de nós é em nós que nos morre.

E depois, meu amigo, enquanto temos um instrumento na mão, não sabemos que temos um instrumento na mão… Todo o gesto, enquanto tal, enquanto se executa, limita-se em si mesmo, esquece a sua origem: toda a acção trai a força que a georu, porque ela é em si própria um princípio e um fim.

Presos ao Passado

Num romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: «E onde irás ser sepultado?» E ela responde: «A minha sepultura maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado.»
De facto, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.

Não há memória dos antepassados e também aqueles que lhes sucedem não serão lembrados

Não há memória dos antepassados e também aqueles que lhes sucedem não serão lembrados pelos seus pósteros.

A Inveja só Incide sobre os Vivos

Por mais que vivamos juntos, e nos vejamos sempre, é por um modo como vago, e passageiro: as cousas nem por estarem muito perto se vêem melhor, e os Heróis o que os faz mais visíveis, é a distância, e desproporção dos outros homens em que os põem as suas acções; não só os homens, mas ainda os sucessos, quanto mais longe vão ficando, mais crescem, e nos vão parecendo maiores, até que os vimos a perder de vista, e muitas vezes da memória; porque no tempo também há um ponto de perspectiva, donde como em espelho vão crescendo todos os objectos, e em chegando a um certo termo, desaparecem. As empresas, que hoje vemos, talvez não sejam inferiores às que a tradição refere do tempo do heroísmo; porém têm de menos o estarem próximas a nós, e as outras têm de mais, o valor que recebem de uma antiguidade venerável: aquelas admiramos porque não temos inveja, nem vaidade, que nos preocupe contra os que passaram há muitos séculos; contra os que existem sim, e destes, se sabemos as acções, também sabemos as circunstâncias delas; por isso as desprezamos, porque é rara a empresa heróica, em que não entre algum fim indigno,

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O Prazer do Beneficiador é Sempre Maior do que o do Beneficiado

– Não me podes negar um facto, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado. Que é o benefício? É um acto que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incómodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o acto. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este facto, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno.
Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa;

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A Sabedoria da Velhice

Aquele que envelhece e que segue atentamente esse processo poderá observar como, apesar de as forças falharem e as potencialidades deixarem de ser as que eram, a vida pode, até bastante tarde, ano após ano e até ao fim, ainda ser capaz de aumentar e multiplicar a interminável rede das suas relações e interdependências e como, desde que a memória se mantenha desperta, nada daquilo que é transitório e já se passou se perde.

As Janelas da Memória

A memória humana não é lida globalmente, como a memória dos computadores, mas por áreas específicas a que chamo de janelas. Através das janelas vemos, reagimos, interpretamos… Quantas vezes tentamos lembrar-nos de algo que não nos vem à ideia? Nesse caso, a janela permaneceu fechada ou inacessível.

A janela da memória é, portanto, um território de leitura num determinado momento existencial. Em cada janela pode haver centenas ou milhares de informações e experiências. O maior desafio de uma mulher, e do ser humano em geral, é abrir o máximo de janelas em cada situação. Se ela abre diversas janelas, poderá dar respostas inteligentes. Se as fecha, poderá dar respostas inseguras, medíocres, estúpidas, agressivas. Somos mais instintivos e animalescos quando fechamos as janelas, e mais racionais quando as abrimos.

O mundo dos sentimentos possui as chaves para abrir as janelas. O medo, a tensão, a angústia, o pânico, a raiva e a inveja podem fechá-las. A tranquilidade, a serenidade, o prazer e a afetividade podem abri-las. A emoção pode fazer os intelectuais reagirem como crianças agressivas e as pessoas simples reagirem como elegantes seres humanos. Sob um foco de tensão, como perdas e contrariedades, uma mulher serena pode ficar irreconhecível.

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A Memória

Quanto mais algo é inteligível, mais facilmente se retém, e, ao contrário, quanto menos, mais facilmente o esquecemos. Por exemplo, se eu transmitir a alguém uma porção de palavras soltas, muito mais dificilmente as reterá do que se apresentar as mesmas palavras em forma de narração. Reforçada também sem auxílio do intelecto, a saber, pela força mediante a qual a imaginação ou o sentido a que chamam comum é afectado por alguma coisa singular corpórea. Digo singular, pois a imaginação só é afectada por coisas singulares. Com efeito, se alguém ler, por exemplo, só uma novela de amor, retê-la-á muito bem enquanto não ler muitas outras desse género, porque então vigora sozinha na imaginação; mas, se são mais do género, imaginam-se todas juntas e facilmente são confundidas.
Digo também corpórea, pois a imaginação só é afectada por corpos. Como, portanto, a memória é fortalecida pelo intelecto e também sem ele, conclui-se que é algo diverso do intelecto e que não há nenhuma memória nem esquecimento a respeito do intelecto visto em si.
O que será, pois, a memória? Nada mais do que a sensação das impressões do cérebro junto com o pensamento de uma determinada duração da sensação;

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Este Não-Futuro que a Gente Vive

Será que nos resta muito depois disto tudo, destes dias assim, deste não-futuro que a gente vive? (…) Bom, tudo seria mais fácil se eu tivesse um curso, um motorista a conduzir o meu carro, e usasse gravatas sempre. Às vezes uso, mas é diferente usar uma gravata no pescoço e usá-la na cabeça. Tudo aconteceu a partir do momento em que eu perdi a noção dos valores. Todos os valores se me gastaram, mesmo à minha frente. O dinheiro gasta-se, o corpo gasta-se. A memória. (…) Não me atrai ser banqueiro, ter dinheiro. Há pessoas diferentes. Atrai-me o outro lado da vida, o outro lado do mar, alguma coisa perfeita, um dia que tenha uma manhã com muito orvalho, restos de geada… De resto, não tenho grandes projectos. Acho que o planeta está perdido e que, provavelmente, a hipótese de António José Saraiva está certa: é melhor que isto se estrague mais um bocadinho, para ver se as pessoas têm mais tempo para olhar para os outros.

Pais Aprisionados

As crianças tornaram-se uma arma de arremesso à medida de quase tudo. Justificam as discussões entre marido e mulher, justificam a falta de generosidade para com o próximo, justificam a indisponibilidade e a inacção em geral – e no fim, em muitos casos (…), ainda nos absolvem pelo fracasso a que, pulverizados os sonhos da infância, os objectivos da juventude e as agendas da primeira idade adulta, nos vemos a certa altura obrigados a resumir o balanço das nossas vidas. E talvez haja, afinal, uma certa racionalidade no cosmos. Talvez haja uma razão para nunca, até hoje, nós não termos tido filhos, eu e outros como eu. Talvez nenhum de nós esteja ainda pronto para resistir à inevitável tentação de transformar os filhos num desmentido oficial para a nossa frustração. Talvez, no dia em que os tivermos, estejamos já preparados para conter o impulso de culpá-los por essa frustração. E talvez sejamos nós, enfim, os primeiros a fugir à inclinação para considerar que a nossa vida apenas começou no dia em que começou a vida dos nossos filhos. Até porque, disto tenho eu a certeza, filhos de pais cuja memória alcança para além do dia do primeiro parto resultam sempre em adultos mais saudáveis,

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A Virtude do Aforista

A excelência dos aforismos não consiste tanto na expressão de algum sentimento raro e abstruso, como na compreensão de algumas óbvias e úteis verdades em poucas palavras. Nós frequentemente caímos em erros e distracções, não porque os verdadeiros princípios de acção não sejam conhecidos, mas porque, durante algum tempo, eles não são recordados; e o aforista pode, então, ser enumerado justamente entre os benfeitores do género humano que contrai as grandes regras da vida em sentenças curtas, que podem ser facilmente colocadas na memória, e serem ensinadas através da lembrança frequente para que possam ocorrer periodicamente à mente.

A Vaidade Acompanha-nos Até na Morte

Sendo o termo da vida limitado, não tem limite a nossa vaidade; porque dura mais, do que nós mesmos, e se introduz nos aparatos últimos da morte. Que maior prova, do que a fábrica de um elevado mausoléu? No silêncio de uma urna depositam os homens as suas memórias, para com a fé dos mármores fazerem seus nomes imortais: querem que a sumptuosidade do túmulo sirva de inspirar veneração, como se fossem relíquias as suas cinzas, e que corra por conta dos jaspes a continuação do respeito. Que frívolo cuidado! Esse triste resto daquilo, que foi homem, já parece um ídolo colocado em um breve, mas soberbo domicílio, que a vaidade edificou para habitação de uma cinza fria, e desta declara a inscrição o nome, e a grandeza. A vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura.

Vivemos com vaidade, e com vaidade morremos; arrancando os últimos suspiros, estamos dispondo a nossa pompa fúnebre, como se em hora tão fatal o morrer não bastasse para ocupação; nessa hora, em que estamos para deixar o mundo, ou em que o mundo está para nos deixar, entramos a compor, e a ordenar o nosso acompanhamento,

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Se Penso, Existo

Se penso, existo; se falo, existo para os outros, com os outros.

A necessidade é o lugar do encontro. Procuro os outros para me lembrar que existo. E existo, porque os outros me reconhecem como seu igual. Por isso, a minha vida é parte de outras vidas, como um sorriso é parte de uma alegria breve.

Breve é a vida e o seu rasto. A posteridade é apenas a memória acesa de uma vela efémera. Para que a memória não se apague, temos que nos dar uns aos outros, como elos de uma corrente ou pedras de uma catedral.

A necessidade de sobrevivência é o pão da fraternidade.
O futuro é uma construção colectiva.

A Sabedoria do Homem Comum

Os ignorantes e o homem comum não têm problemas. Para eles na Natureza tudo está como deve estar. Eles compreendem as coisas pela simples razão delas existirem. E, na realidade, não dão eles provas de mais razão do que todos os sonhadores, que chegam a duvidar do seu próprio pensamento? Morre um dos seus amigos, e como julgam saber o que é a morte à dor que sentem por o perderem não acrescentam a cruel ansiedade que resulta da impossibilidade de aceitar um acontecimento tão natural… Estava vivo, e agora encontra-se morto; falava-me, o seu espírito prestava atenção ao que eu lhe dizia, mas hoje já nada disso existe: resta apenas aquele túmulo – mas repousa ele nesse túmulo, tão frio como a própria sepultura? Erra a sua alma em redor desse monumento? Quando eu penso nele é a sua alma que vem assolar a minha memória? O hábito traz-nos de novo, contudo, ao nível do homem comum.
Quando o seu rasto se tiver apagado – não há dúvidas de que ele morreu! – então a coisa deixará de nos incomodar. Os sábios e os pensadores parecem portanto menos avançados que o homem comum, já que eles próprios não têm a certeza,

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Um Eu Forte e Maduro

Precisamos de conhecer os papéis do Eu, que representa a capacidade de escolha. Entre esses papéis, o de ser autor da própria história, um protetor da mente, um jardineiro do território da emoção, um plantador de janelas light na memória da pessoa amada.

Discutir, gritar, impor ideias, não significa nem de longe ter um Eu forte, mas sim fraco. Dizer o que vem à mente, dizer sempre a verdade, nem sempre é a expressão de um Eu maduro, mas sim de alguém que não tem autocontrolo. Um Eu forte e maduro aquieta a sua ansiedade, protege a pessoa amada, pede desculpas sem medo, aponta primeiro o dedo a si próprio antes de falar dos erros do outro, repensa a sua história, exige menos e dá-se mais; não tem a necessidade neurótica de mudar as pessoas ao seu redor.

A Certeza do Nosso Amor

A certeza do nosso amor era calma. Ao escrever, algo de nós se tocava. Ao escrever, sentia-a passar por mim, sentia-a atravessar-me. Depois, fechava os olhos e via-a sorrir. Ainda dentro de mim, mas um pouco do seu rosto de anjo e da lonjura do seu olhar e dos seus gestos brandos a existir na página, no texto. Às vezes, levantava-me, segurava as folhas a tremerem-me na mão e lia devagar. Após cada frase, parava e ouvia-a lida na memória. Ela era o texto. Cada palavra a dizia, cada palavra era o nome dos seus gestos e de tudo o que em si era belo. Ela era o sentido das palavras. Ela não era nem material, nem imaterial. Ela era o sentido das palavras. Nem sequer terra, nem sequer céu, estrelas, noite. Existia para lá do que podemos tocar ou entender. Ela era aquilo que existia, porque era sentida por mim. Existia dentro de mim e existia no texto para quem o lesse. Existia porque existia, porque existia para ser sentida. As noites passavam e conhecíamo-nos. Por ela estar dentro de mim e dentro do texto escrito pela minha mão, cheguei a pensar que era parte de mim. Enganei-me. Ela era maior do que eu.

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Prosema II

Para iludir a dúvida, privado de equipagens, nenhum dos habituais pontos de referência vem em meu auxílio. Procuro um ancoradouro distante, fora do estreito mundo em que me movo.
Inútil: bichos, objectos minúsculos, paredes brancas pontilhadas, o botão da campainha à minha esquerda. A memória retira-me a sua cobertura instantânea. Tento galgar esta padiola dentro da minha cabeça e daí lançar-me à desfilada sobre uma estepe daninha ou cair do alto da montanha onde guardo o meu ninho de águia. Digo-vos que só pretendo A Grande Casa Alugada da Minha Infância, o vapor ronceiro em que apenas um velho missionário se lembrara de que uma criança existia. O velho desapareceu inesperadamente num pequeno porto do Zaire e deixou-me só.

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