Citação de

A Fraqueza dos Nossos Sentidos

A fraqueza dos nossos sentidos impede-nos o gozar das cousas na sua simplicidade natural. Os elementos não são em si como nós os vemos: o ar, a água, e a terra a cada instante mudam, o fogo toma a qualidade da matéria que o produz, e tudo enfim se altera, e se empiora para ser proporcionado a nós. A virtude muitas vezes se acha com mistura de algum vício; no vício também se podem encontrar alguns raios de virtude; incapazes de um ser constante, e sólido, dificilmente se pode dar em nós virtude sem mancha, ou perfeito vício: a justiça também se compõe de iniquidade, semelhante à harmonia, que não pode subsistir sem dissonância, antes com correspondência certa, a dissonância é uma parte da harmonia. Vemos as cousas pelo modo com que as podemos ver, isto é, confusamente, e por isso quási sempre as vemos como elas não são.
As paixões formam dentro de nós um intrincado labirinto, e neste se perde o verdadeiro ser das cousas, porque cada uma delas se apropria à natureza das paixões por onde passa. Tomamos por substância, e entidade, o que não é mais do que um costume de ver, de ouvir, e de entender; a vaidade, que de todas as paixões é a mais forte, a todas arrasta, e dá ao nosso conceito a forma que lhe parece; o entendimento é como uma estampa, que se deixa figurar, e que facilmente recebe a figura que se lhe imprime.

A vaidade propõe, e decide logo, de sorte que quando as cousas chegam ao entendimento já este está vencido; o que faz é aprovar o preconceito anterior, que a vaidade lhe introduz, e assim quando a vaidade busca o entendimento é só por formalidade, e só para a defender, e autorizar, e não para aconselhar. O discorrer com liberdade, supõe uma exclusão de todas as paixões; que os homens se possam isentar de algumas, pode ser, mas que de todas fique isento ao mesmo tempo, é mui difícil.