O Homem Não é o Indivíduo
«Não é a arranhar interminavelmente o indivíduo que acabamos por encontrar o homem» – diz alguém em certo livro do Malraux. Nada, de facto, mais útil que a separação dos dois conceitos, que tanto tendem a confundir-se, mormente hoje, em que tal confusão parece agravar-se. Com efeito, o «homem» não é o «indivíduo», porque é só do indivíduo aquela parte que pode universalizar-se. E é desta ideia que temos de partir para que um equívoco se não consuma, o equívoco de um individualismo, de um pessoalismo restrito que a arte e o pensamento modernos parecem à primeira vista aceitar.
Que estranho «eu» é pois este que de algum modo dir-se-ia predominar na filosofia e na literatura de hoje? Porque é evidente que uma forte tendência da arte de hoje, do homem actual, apela para a comunicabilidade, para uma fraternidade, e não para um estéril isolamento. Mas acontece que nesse apelo muitas vezes se esquece o que há aí de mecânico, de superficial, de relações externas, imediatas, provisórias, que nos não satisfaz inteiramente. O homem que aí fala é o que se ensurdece a si próprio, às suas vozes profundas, aos avisos que se anunciam desde o limiar da solidão.
Passagens sobre Literatura
246 resultadosAs pessoas que são estranhas ao licôr são incapazes de falar sobre literatura.
Os Clássicos da Literatura
As emoções que a literatura suscita são talvez eternas, mas os meios devem variar constantemente, mesmo que lligeiramente, para não perder a sua virtude. Desgastam-se à medida que o leitor os reconhece. Daí o perigo de afirmar que existem obras clássicas que o serão para sempre.
Cada qual descrê da sua arte e dos seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a indefinida duração de Voltaire ou de Shakespeare, acredito (nesta tarde de um dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.
Clássico não é um livro (repito-o) que possui necessariamente tais ou tais méritos. É um livro que as gerações dos homens, motivadas por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade.
A Destruição de Tudo
É a palavra de ordem para o homem de hoje. Destruir. Tudo. Os deuses, as artes, diferenças culturais, ou a só cultura, diferenças sexuais, diferenças literárias ou a só literatura que leva hoje tudo, valores de qualquer espécie, filosofias, o simples pensamento, a simples palavra – tudo alegremente ao caixote. Entretanto, ou por isso, proliferação das gentes com a forma que lhes pertence, devastação da sida, que foi o que de melhor a natureza arranjou para equilibrar a demografia, droga dura para se avançar na vida mais depressa, criminalidade para esse avanço, juventude de esgotos nocturnos, velhos em excesso e que não há maneira de se despacharem e atulham os chamados lares de idosos ou simplesmente os depósitos em que são largados até mudarem de cemitério, politiqueiros que têm a verdade do erro que se segue e o mais e o mais. É tempo de cair um pedregulho como o que acabou com os dinossauros há sessenta milhões de anos e de poder dar-se a hipótese de a vida recomeçar. Até que venha outra vez a destruição e Deus definitivamente se farte do brinquedo. Entretanto vê se vês ainda alguma flor ao natural e demora-te um pouco a admirar-lhe a beleza e estupidez.
A Cultura Portuguesa e o Provincianismo
A cultura portuguesa tem um amor fatal pelo provincianismo. O provincianismo é a forma mais «engagée» de existir socialmente e literariamente. Daí a impossibilidade, ou melhor, o medo de se realizar sequer um realismo a sério, porquanto este exige uma descida ao inferno e não vejo por aí quem se atreva além do purgatório. Fica-se assim na meia tinta do naturalismo, retratando quadros convencionais de uma sociedade provinciana onde, além da já muito conhecida injustiça social (reparável pela economia e não pela literatura), nada se capta que possa sugerir a simples violência de se estar no mundo. Provincianismo chama-se ainda àquela nossa atitude que toma muito a sério ou, ainda, solenemente, tudo o que faz, tornando inviável uma literatura que desmonte eficazmente a engrenagem humana e social pela incomplacente investida de um humor cruel. Houve recentes tentativas queirozianas para denunciar as fraquezas do meio. Conseguiu-se fazer realismo desta vez? Também não, porque se fez realismo de empréstimo, de segunda mão, colhido no «diz-se diz-se» das esquinas. Escreveu-se razoavelmente má-língua, mas não se agitaram as pessoas e as instituições de forma a tornar visível o lodo depositado no fundo. Isto quanto aos que fazem profissão de fé de realismo social ou burguês.
O Orgulho de Ser Português
Aquelas qualidades que se revelaram e fixaram e fazem de nós o que somos e não outros; aquela doçura de sentimentos, aquela modéstia, aquele espírito de humanidade, tão raro hoje no mundo; aquela parte de espiritualidade que, mau grado tudo que a combate inspira ainda a vida portuguesa; o ânimo sofredor; a valentia sem alardes; a facilidade de adaptação e ao mesmo tempo a capacidade de imprimir no meio exterior os traços do modo de ser próprio; o apreço dos valores morais; a fé no direito, na justiça, na igualdade dos homens e dos povos; tudo isso, que não é material nem lucrativo, constitui traços do carácter nacional. Se por outro lado contemplamos a História maravilhosa deste pequeno povo, quase tão pobre hoje como antes de descobrir o mundo; as pegadas que deixou pela terra de novo conquistada ou descoberta; a beleza dos monumentos que ergueu; a língua e literatura que criou; a vastidão dos domínios onde continua, com exemplar fidelidade à sua História e carácter, alta missão civilizadora – concluiremos que Portugal vale bem o orgulho de se ser português.
Todos Nós Hoje Nos Desabituamos do Trabalho de Verificar
Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar—«É um génio!» ou «É um santo!» of erecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre,
Não Percamos de Vista os Nossos Antepassados
Quando uma literatura chega a ter êxito, aquilo que nela havia de mais activo em momentos anteriores torna-se menos claro e é ultrapassado por aquilo que nela é mero produto dessa actividade. É por isso que é bom olhar de vez em quando para trás. Tudo o que em nós há de original conservar-se-á tanto melhor e será tanto mais apreciado, quanto mais formos capazes de não perder de vista os nossos antepassados.
A sátira é a literatura das sociedades moribundas.
A Minha Lista dos Grandes Autores
Uma revista espanhola teve a ideia de pedir a uns quantos escritores que elaborassem a sua árvore genealógica literária, isto é, a que outros autores consideravam eles como avoengos seus, directos ou indirectos, excluindo-se do inventado parentesco, obviamente, qualquer presunção de relações ou equivalências de mérito que a realidade, pelo menos no meu caso, logo se encarregaria de desmentir. Também se pedia que, em brevíssimas palavras, fosse dada a justificação dessa espécie de adopção ao contrário, em que era o «descendente» a escolher o «ascendente». A cada escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão-de vir a aparecer os retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respectiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no «Ano da Morte de Ricardo Reis», todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que não é preciso ser-se génio para escrever um livro genial,
A forma e o conteúdo são indissociáveis e a qualquer livro que não tome isso em consideração falta uma noção fundamental da literatura. Se a forma não servir o conteúdo não me interessa, se por outro lado a forma for uma sucessão de malabarismos literários sem nenhum outro propósito também não me interessa.
Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu.
A Escrita Exige Sempre a Poesia
Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.
Muitas vezes jovens me perguntam como se redige uma peça literária. A pergunta não deixa de ter sentido. Mas o que deveria ser questionado era como se mantém uma relação com o mundo que passe pela escrita literária. Como se sente para que os outros se representem em nós por via de uma história? Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam.
A Eterna Criação da Literatura
A literatura é um acontecimento completamente à parte. É um acontecimento que, de cada vez, recomeça de alto a baixo. É um acontecimento sem hábitos. No caso de um bom marceneiro, ou mesmo de um bom buscador de ouro, trata-se de refazer o que se fazia antes dele e – se for possível – contribuir com o seu pequeno aperfeiçoamento para a forma da mesa ou para o oco da bateia. Mas um jovem escritor não deve absolutamente ameliorar Proust, ou aperfeiçoar Claudel, completar Gide ou fazer um pequeno retoque a Valéry. Não, de modo algum. Cabe-lhe escrever como se nem Gide, nem Proust tivessem existido nunca.
É necessária uma grande quantidade de História para se fazer pouca literatura.
Eu não sei o que é que é light, sei o que é light em relação a cigarros. Há literatura, e não há literatura. Pois a literatura não é isso, é uma coisa nobre, a literatura é o que faz o Dostoievski.
O moralismo é a antítese da Literatura. A Literatura começa precisamente quando recusamos ser moralistas e instintivamente somos perversos. Quem escreve não pode olhar para onde toda a gente está a olhar, mas para o outro lado.
A publicidade é uma das formas mais interessantes e difíceis da literatura moderna.
A literatura é a infância por fim recuperada.
A Literatura é a Mais Ameaçada das Formas de Arte
Justamente porque a literatura se funda genericamente na ideia, ela é a mais ameaçada das formas de arte, para lá do que sabemos da sua aparente maior duração. Ou portanto a mais equívoca. Ou a mais mortal. Porque nas outras artes, a ideia é a nossa tradução do seu silêncio, o modo de uma emoção ser dita ou seja transaccionável, um modo irresistível de explicar, uma forma afinal de dominarmos o que nos domina, porque nomear é reduzir ao nosso poder aquilo que se nomeia. Mas a forma de arte não discursiva permanece intacta ao nosso nomear. A literatura, porém, é nesse nomear que começa. Na relação da emoção com a palavra que a diz, o seu movimento é inverso do que acontece com a música ou a pintura. A emoção de um quadro resolve-se numa palavra terminal. Mas a literatura parte-se dessa palavra para se chegar á emoção. Assim pois a «ideia» é o seu elemento nuclear, ainda que uma associação imprevisível de palavras a disfarce.