Longos

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Longos para ler e compartilhar. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Disputa das Ideias

Temos cada vez mais tipos de ordem e cada vez menos ordem. (…) Depois de todos os esforços do passado, entrámos num período de retrocesso. Vê bem como as coisas se passam hoje: quando um homem importante lança uma nova ideia no mundo, ela é imediatamente apanhada por um mecanismo de divisão, constituído por simpatia e repulsa. Primeiro vêm os admiradores e arrancam grandes bocados, os que lhes convêm, a essa ideia, e despedaçam o mestre como as raposas a presa; a seguir, os adversários destroem as partes fracas, e em pouco tempo o que resta de um grande feito mais não é do que uma reserva de aforismos de que amigos e inimigos se servem a seu bel-prazer. O resultado é uma ambiguidade generalizada. Não há Sim a que se não junte um Não. Podes fazer o que quiseres, que encontras sempre vinte das mais belas ideias a favor e, se quiseres, vinte que são contra. Quase somos levados a acreditar que é como no amor e no ódio, ou na fome, em que os gostos têm de ser diferentes, para que cada um fique com o seu bocado.

O Centro do Universo

Se todo o indivíduo pudesse escolher entre o seu próprio aniquilamento e o do resto do mundo, não preciso dizer para que lado, na maioria dos casos, penderia a balança. Conforme essa escolha, cada um faz de si o centro do universo, refere tudo a si mesmo e considera primeiramente tudo o que acontece – por exemplo, as maiores mudanças no destino dos povos – do ponto de vista do seu interesse. Ainda que este seja muito pequeno e remoto, é nele que pensa acima de tudo. Não existe contraste maior do que aquele entre a alta e exclusiva divisão, que cada um faz dentro do seu próprio eu, e a indiferença com a qual, em geral, todos os outros consideram aquele eu, bem como o primeiro faz com o deles.
Chega a ter o seu lado cómico ver os inúmeros indivíduos que, pelo menos no aspecto prático, consideram-se exclusivamente reais e aos outros, de certo modo, como meros fantasmas.
[…] O único universo que todos realmente conhecem e do qual têm consciência é aquele que carregam consigo como sua representação e que, portanto, constitui o seu centro. É justamente por isso que cada um é em si mesmo tudo em tudo.

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Seguro Emocional

Com frequência, comento com os meus alunos da licenciatura em psicanálise e psicologia multifocal que uma das tarefas mais nobres e relevantes do Eu é mapear, esquadrinhar os nossos fantasmas e reeditar as nossas janelas traumáticas. De outro modo, podemos fazer parte do rol dos que falam sobre maturidade mas são verdadeiras crianças no território da emoção, pois não sabem ser minimamente criticados, contrariados e, além disso, têm a necessidade neurótica de poder e de que o mundo gravite na sua órbita.

Certa vez, perguntei a executivos das cinquenta empresas psicologicamente mais saudáveis do país: «Quem tem algum tipo de seguro?» Todos responderam que tinham. Em seguida, indaguei: «Quem tem um seguro emocional?» Ninguém arriscou levantar a mão. Foram sinceros. Como podemos falar de empresas saudáveis sem mencionar os mecanismos básicos para proteger a emoção? Só fazemos um seguro daquilo que nos é caro. Mas, infelizmente, a mais importante propriedade tem tido um valor irrelevante.

Em geral, estes profissionais são ótimos para a empresa, mas carrascos de si mesmos. Acertam no trivial, mas erram muito no essencial. E eu? E o leitor? Ainda que possamos dizer que a mente humana é a mais complexa de todas as «empresas»,

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O seu Instinto Leva-o mais Longe que o seu Intelecto

«Homem, conhece-te a ti mesmo» – toda a sabedoria se encontra concentrada nesta frase. Auto-análise, depois acção – a escola da sabedoria. Quanto mais cedo descobrir os factos acerca da sua pessoa mais fácil será a jornada da vida. Para tirar o máximo de nós, temos de conhecer os recursos que possuímos e depois aperfeiçoá-los e utilizá-los. Pelo controlo das emoções uma pessoa consegue superar quase todas as dificuldades que habitualmente estragam a vida.
(…) Sem olhar à profundidade dos seus sentimentos, à vastidão dos seus conheciemntos, o homem aparentemente completo não o é sem que tenha aperfeiçoado as suas tendências. Quem quiser melhorar os condicionalismos externos tem de começar por melhorar os internos. Quando as coisas não estão a correr bem há qualquer coisa em mim a dizer-mo. Às vezes tenho de pensar muito para descobrir o erro e como corrigi-lo. Depois de resolver o problema sinto-me novamente bem. Isto prova que «O seu instinto leva-o mais longe que o seu intelecto».

Vaidade a Qualquer Preço

Muitas vezes obramos bem por vaidade, e também por vaidade obramos mal: o objecto da vaidade é que uma acção se faça atender, e admirar, seja pelo motivo, ou razão que for. Não só o que é digno de louvor é grande; porque também há cousas grandes pela sua execração; é o que basta para a vaidade as seguir, e aprovar. A maior parte das empresas memoráveis, não tiveram a virtude por origem, o vício sim; e nem por isso deixaram de atrair o espanto, e admiração dos homens.
A fama não se compõe apenas do que é justo, e o raio não só se faz atendível pela luz, mas pelo estrago. A vaidade apetece o estrondoso, sem entrar na discussão da qualidade do estrondo: faz-nos obrar mal, se desse mal pode resultar um nome, um reparo, uma memória. Esta vida é um teatro, todos queremos representar nele o melhor papel, ou ao menos um papel importante, ou em bem, ou em mal. A vaidade tem certas regras, uma delas é, que a singularidade não só se adquire pelo bem, mas também pelo mal, não só pelo caminho da virtude, mas também pelo da culpa; não só pela verdade,

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O Poder que Alterna entre o Dinheiro e o Sangue

Um poder só pode ser derrubado por outro poder, e não por um princípio, e nenhum poder capaz de defrontar o dinheiro resta, a não ser este.O dinheiro só é derrubado e abolido pelo sangue. A vida é alfa e ómega, o contínuo fluxo cósmico em forma microcósmica. É o facto de factos no mundo-como-história… Na História é a vida e só a vida – qualidade rácica, o triunfo da vontade-de-poder – e não a vitória de verdades, descobertas ou dinheiro que importa. A história do mundo é o tribunal do mundo, e decidiu sempre a favor da vida mais forte, mais completa e mais confiante em si – decretou-lhe, nomeadamente, o direito de existir, sem querer saber se os seus direitos resistiriam perante um tribunal de consciência despertada. Sacrificou sempre a vontade e a justiça ao poder e à raça e lavrou sentença de morte a homens e povos para os quais a verdade valia, mais do que os feitos e a justiça, mais que a força. E assim o drama de uma alta Cultura – esse maravilhoso mundo de divindades, artes, pensamentos, batalhas e cidades – termina com o regresso dos factos prístinos do eterno sangue que é uma e a mesma coisa que o sempre-envolvente fluxo cósmico…

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Ninguém é Feliz quando Treme pela sua Felicidade

Ninguém é feliz quando treme pela sua felicidade. Não se apoia em bases sólidas quem tira a sua satisfação de bens exteriores, pois acabará por perder o bem-estar que obteve. Pelo contrário, um bem que nasce dentro de nós é permanente e constante, e vai sempre crescendo até ao nosso último momento; todos os demais bens ante os quais se extasia o vulgo são bens efémeros. “E então? Quer isso dizer que são inúteis e não podem dar satisfação?” É evidente que não, mas apenas se tais bens estiverem na nossa dependência, e não nós na dependência deles. Tudo quanto cai sob a alçada da fortuna pode ser proveitoso e agradável na condição de o seu beneficiário ser senhor de si próprio em vez de ser servo das suas propriedades. É um erro pensar-se, Lucílio, que a fortuna nos concede o que quer que seja de bom ou de mau; ela apenas dá a matéria com que se faz o bom e o mau, dá-nos o material de coisas que, nas nossas mãos, se transformam em boas ou más.
O nosso espírito é mais poderoso do que toda a espécie de fortuna, ele é quem conduz a nossa vida no bom ou no mau sentido,

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O Nobre Patriotismo dos Patriotas

Há em primeiro lugar o nobre patriotismo dos patriotas: esses amam a pátria, não dedicando-lhe estrofes, mas com a serenidade grave e profunda dos corações fortes. Respeitam a tradição, mas o seu esforço vai todo para a nação viva, a que em torno deles trabalha, produz, pensa e sofre: e, deixando para trás as glórias que ganhámos nas Molucas, ocupam-se da pátria contemporânea, cujo coração bate ao mesmo tempo que o seu, procurando perceber-lhe as aspirações, dirigir-lhe as forças, torná-la mais livre, mais forte, mais culta, mais sábia, mais próspera, e por todas estas nobres qualidades elevá-la entre as nações. Nada do que pertence à pátria lhes é estranho: admiram decerto Afonso Henriques, mas não ficam para todo o sempre petrificados nessa admiração: vão por entre o povo, educando-o e melhorando-o, procurando-lhe mais trabalho e organizando-lhe mais instrução, promovendo sem descanso os dois bens supremos – ciência e justiça.
Põem a pátria acima do interesse, da ambição, da gloríola; e se têm por vezes um fanatismo estreito, a sua mesma paixão diviniza-os. Tudo o que é seu o dão à pátria: sacrificam-lhe vida, trabalho, saúde, força, o melhor de si mesmo. Dão-lhe sobretudo o que as nações necessitam mais,

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A Imensa Imoralidade da Existência

Viver era como correr em círculo num grande labirinto, esse género de labirinto para crianças que se vê em certos parques de jogos modernos; em cima de uma pedra no meio do labirinto há uma pedra brilhante; os míudos chegam com as faces coradas, cheios de uma fé inabalável na honestidade do labirinto e começam a correr com a certeza de alcançarem dentro de pouco tempo o seu alvo. Corremos, corremos, e a vida passa, mas continuaremos a correr na convicção de que o mundo acabará por se mostrar generoso para quem correr sem desãnimo, e quando por fim descobrimos que o labirinto só aparentemente tende para o ponto central, é tarde demais – de facto, o construtor do labirinto esmerou-se a desenhar várias pistas diferentes, das quais só uma conduz à pérola, de modo que é o acaso cego e não a justiça lúcida o que determina a sorte dos que correm.
Descobrimos que gastámos todas as nossas forças a realizar um trabalho perfeitamente inútil, mas é muito tarde já para recuarmos. Por isso não é de espantar que os mais lúcidos saiam da pista e suprimam algumas voltas inúteis para atingirem o centro cortando caminho. Se dissermos que se trata de uma acção imoral e maldosa,

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Cantigas

Quando vejo a minha amada
Parece que o Sol nasceu;
Cantai, cantai alvorada
Ó avezinhas do céu.

Nessas águas do Mondego
Se pode a gente mirar,
Elas procuram sossego…
E vão caminho do mar.

A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor.

Não me fales da janela,
Que te não ouço da rua;
Fala-me de alguma estrela,
Que te vou ouvir da Lua.

Dizes que a letra não deve
Ser nunca miudinha;
Mas grada ou miúda escreve,
Que o coração adivinha.

Não digas que me não amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços do amor são chamas,
E não se brinca com lume.

A virgem dos meus amores
Sobressai entre as mais belas:
É como a rosa entre flores,
É como o Sol entre estrelas.

Eu zombo de sol e chuva,
Noite e dia, terra e mar;
Ais de uma pobre viúva,
Se os ouço, dá-me em chorar.

A sombra da nuvem passa
depressa pela seara;

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Amizade Correcta

O sábio, ainda que se baste a si mesmo, deseja ter um amigo, quanto mais não fosse para exercer a amizade, para não deixar definhar tão grande virtude. Ele não busca, como dizia Epicuro, «alguém que lhe vele à cabeceira em caso de doença, que o socorra quando esteja em grilhões ou na indigência». Busca alguém a cuja cabeceira de doente possa velar; alguém que, quando implicado numa contenda, ele possa salvar dos cárceres inimigos. Pensar em si próprio, e empenhar-se numa amizade com esse pensamento preconcebido, é cometer um erro de cálculo. A empresa terminará como começou. Fulano arranjou um amigo para dispor, um dia, de um libertador que o preserve dos grilhões. Ao primeiro tinido de cadeias, lá se vai o amigo.
Tais são as amizades que o mundo chama de «ligações temporárias». O homem a quem se escolhe para prestar serviços deixará de agradar no dia em que não sirva para mais nada. Daí a constelação de amigos ao redor das grandes fortunas. Vinda a ruína, faz-se, à volta, a solidão: os amigos esquivam-se dos lugares onde são postos à prova. Daí, todos esses escândalos: amigos abandonados, amigos traídos, sempre por medo! É inevitável que o fim concorde com o começo: o interesse fez de sicrano teu amigo;

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A Confiança é o Elo entre a Sociedade e a Amizade

Ainda que a sinceridade e a confiança estejam relacionadas, são, no entanto, diferentes: a sinceridade consiste em abrir o coração e em mostrarmo-nos tal como somos por amor da verdade. Odeia o disfarce e quer reparar as suas faltas, mesmo que para isso seja preciso diminui-las pelo valor da confissão. Quanto à confiança, esta não nos concede o mesmo grau de liberdade, as suas regras são mais rigorosas, requer mais prudência e moderação. Ora, nem sempre estamos livres para obedecer a estes requisitos. Não somos só nós, no que a ela diz respeito, que estamos envolvidos, porque os nossos interesses misturam-se quase sempre com os dos outros. Requer uma enorme justeza para não levar os nossos amigos a entregarem-se, pelo facto de nós nos termos entregado, como para lhes oferecer um presente, com a única intenção de aumentar o preço do que nós damos.
Fica-se sempre satisfeito com o facto de os outros depositarem confiança em nós porque é um tributo que oferecemos ao nosso mérito, é um depósito que fazemos à nossa confiança, são, enfim, fianças que lhes dão algum direito sobre nós, isto é, aceitamos uma certa dependência à qual nos sujeitamos voluntariamente. Não, não é minha intenção destruir com as minhas palavras a confiança,

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O Ponto mais Alto da Moral Consiste na Gratidão

O ponto mais alto da moral consiste na gratidão. E esta verdade proclamá-la-ão todas as cidades, todos os povos, mesmo os oriundos das regiões bárbaras, neste ponto estão de acordo os bons e os maus. Haverá quem aprecie sobre­tudo o prazer, outros haverá que julguem preferível o esforço activo; uns consideram a dor como o sumo mal, para outros a dor não será sequer um mal; alguns inclui­rão a riqueza no sumo bem, outros dirão que a riqueza foi inventada para o mal da humanidade e que o homem mais rico é aquele a quem a fortuna nada encontra para dar; no meio desta diversidade de posições uma coisa há que todos afirmarão, como soe dizer-se, a uma só voz: que devemos gratidão àqueles que nos favorecem. Neste ponto toda esta multidão de opiniões se mostra de acordo, mesmo quando por vezes pagamos favores com injúrias; e a pri­meira causa de ingratidão é não podermos ser suficiente­mente gratos. A insensatez chegou ao ponto de se tornar perigosíssimo fazer um grande benefício a alguém; como se considera uma vergonha não pagar o benefício, julga-se preferível não existir ninguém que no-lo faça! Goza em paz o que de mim recebeste; não to reclamo,

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A Essência das Coisas

Nunca me conformei com um conceito puramente científico da Existência, ou aritmético-geométrico, quantitativo-extensivo. A existência não cabe numa balança ou entre os ponteiros dum compasso. Pesar e medir é muito pouco; e esse pouco é ainda uma ilusão. O pesado é feito de imponderáveis, e a extensão de pontos inextensos, como a vida é feita de mortes.
A realidade não está nas aparências transitórias, reflexos palpitantes, simulacros luminosos, um aflorar de quimeras materiais. Nem é sólida, nem líquida, nem gasosa, nem electromagnética, palavras com o mesmo significado nulo. Foge a todos os cálculos e a todos os olhos de vidro, por mais longe que eles vejam, ou se trate dum núcleo atómico perdido no infinitamente pequeno, ou da nebulosa Andrómeda, a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia!
A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão. Esta apenas descobre um simples jogo de forças repetido ou modificado lentamente, gestos insubstanciais, formas ocas, a casca de um fruto proibido.
Mas o miolo é do poeta. Só ele saboreia a vida até ao mais íntimo do seu gosto amargoso,

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Vilegiatura

O sossego da noite, na vilegiatura no alto;
O sossego, que mais aprofunda
O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;
O silêncio, que mais se acentua,
Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro …
Ah, a opressão de tudo isto!
Oprime como ser feliz!
Que vida idílica, se fosse outra pessoa que a tivesse
Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada
Sob o céu sardento de estrelas,
Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!

Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa,
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.

Sempre esta inquietação mordida aos bocados
Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.
Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos
Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.

Sempre, sempre, sempre
Este defeito da circulação na própria alma,
Esta lipotimia das sensações,
Isto…

(Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,

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Memória Personalizada

Não acontece apenas que certas pessoas têm memória e outras não (…), mas, mesmo com memórias iguais, duas pessoas não se lembram das mesmas coisas. Uma terá prestado pouca atenção a um facto do qual a outra guardará um grande remorso, e em contrapartida terá apanhado no ar como sinal simpático e característico uma palavra que a outra terá deixado escapar quase sem pensar. O interesse de não nos termos enganado quando emitimos um prognóstico falso abrevia a duração da lembrança desse prognóstico e permite-nos afirmar em breve que não o emitimos. Enfim, um interesse mais profundo, mais desinteressado, diversifica as memórias das pessoas, de tal modo que o poeta que esqueceu quase tudo dos factos que outros lhe recordam retém deles uma impressão fugidia.
De tudo isso, resulta que, passados vinte anos de ausência, encontramos, em lugar de esperados rancores, perdões involuntários, inconscientes, e, em contrapartida, tantos ódios cuja razão não conseguimos explicar (porque esquecemos também a má impressão que causámos). Até da história das pessoas que conhecemos melhor esquecemos as datas.

Velha Página

Chove. Que mágoa lá fora!
Que mágoa! Embruscam-se os ares
Sobre este rio que chora
Velhos e eternos pesares.

E sinto o que a terra sente
E a tristeza que diviso,
Eu, de teus olhos ausente,
Ausente de teu sorriso…

As asas loucas abrindo,
Meus versos, num longo anseio,
Morrerão, sem que, sorrindo,
Possa acolhê-los teu seio!

Ah! quem mandou que fizesses
Minh’alma da tua escrava,
E ouvisses as minhas preces,
Chorando como eu chorava?

Por que é que um dia me ouviste,
Tão pálida e alvoroçada,
E, como quem ama, triste,
Como quem ama, calada?

Tu tens um nome celeste…
Quem é do céu é sensível!
Por que é que me não disseste
Toda a verdade terrível?

Por que, fugindo impiedosa,
Desertas o nosso ninho?
– Era tão bela esta rosa!…
Já me tardava este espinho!

Fora melhor, porventura,
Ficar no antigo degredo
Que conhecer a ventura
Para perdê-la tão cedo!

Por que me ouviste, enxugando
O pranto das minhas faces?

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A Face Oculta dos Progressos Técnicos

Os progressos técnicos, que toda a gente está confundindo cada vez mais com progresso humano, vão criar cada vez mais também um suplemento de ócio que, excelente em si próprio, porque nos aproxima exactamente daquele contemplar dos lírios e das aves que deve ser nosso ideal, vai criar, olhado à nossa escala, uma força de ataque e de triunfo; mais gente vai ter cada vez mais tempo para ouvir rádio e para ir ao cinema, para frequentar museus, para ler revistas ou para discutir política, e sem que preparo algum lhe possa ter sido dado para utilizar tais meios de cultura: a consequência vai ser a de que a qualidade do que for fornecido vai descer cada vez mais e a de que tudo o que não for compreendido será destruído; raros novos beneditinos salvarão da pilhagem geral a sempre reduzida antologia que em tais coisas é possível salvar-se.
O choque mais violento vai dar-se exactamente, como era natural, nos países em que existir uma liberdade maior; nos outros, as formas autoritárias de regime de certo modo poderão canalizar mais facilmente a Humanidade para a utilização desse ócio; sucederá, porém, o seguinte: nos países não-livres, porque nenhum há livre,

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Embirração

(A Machado de Assis)

A balda alexandrina é poço imenso e fundo,
Onde poetas mil, flagelo deste mundo,
Patinham sem parar, chamando lá por mim.
Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,
Da beira for do poço, extenso como ele é,
Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé
Que volte um afogado, à luz da mocidade,
A ver no mundo seco a seca realidade.

Por eles, e por mim, receio, caro amigo;
Permite o desabafo aqui, a sós contigo,
Que à moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;
Nem vence o positivo o frívolo ideal;
Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,
E até da vã loucura a moda é prima-irmã:
Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,
Do verso alexandrino há de livrar-nos Deus.

Deus quando abre ao poeta as portas desta vida,

Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
E o triste, se morreu, deixando mal escritas
Em verso alexandrino histórias infinitas,
Vai ter lá noutra vida insípido desterro,
Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;

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Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida,

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