O Romancista e o Escritor
Releio o curto ensaio de Sartre O Que é Escrever?. Nem uma vez ele utiliza as palavras romance, romancista. Fala apenas do escritor da prosa. Distinção justa. O escritor tem ideias originais e uma voz inimitável. Pode servir-se de qualquer forma (romance incluído) e tudo o que escreve, já que marcado pelo seu pensamento, levado pela sua voz, faz parte da sua obra. Rouseau, Goethe, ChateauBriand, Gide, Malraux, Camus, Montherland.
O romancista não liga muito às suas ideias. É um descobridor que, tacteando, se esforça por desvendar um aspecto desconhecido da existência. Não está fascinado pela sua voz mas por uma forma que persegue, e só as formas que respondem às exigências do seu sonho fazem parte da sua obra. Fielding, Sterne, Flaubert, Proust, Faulkner, Céline, Calvino.
O escritor inscreve-se na carta espiritual do seu tempo, da sua nação, na da história das ideias. O único contexto em que se pode apreender o valor de um romance é o da história do romance europeu. O romancista não tem contas a prestar a ninguém, excepto a Cervantes.
Passagens sobre Distinção
67 resultadosSímios Aperfeiçoados II
A tragédia é a cristalização da massa humana, tão perigosa como a estagnação do espírito do homem que se torna académico ou fenece por falta de entusiasmo. Gostava de saber quantas pessoas pensam em macacos durante o correr de um dia? Quantas? O homem-massa, num futuro próximo – em relações antropológicas o próximo leva geralmente centenas de anos – transformar-se-á num novo espectáculo de jardim zoológico. Em vez de jaula e aldeias de símios, ele terá balneários públicos e campos para habilidades desportivas, com ocasionais jogos nocturnos. Dará palmas em delírio ouvindo ainda o som distante da sineta tocada pelo elefante num acto máximo de inteligência paquidérmica. Terá circuitos fechados, com pistas perfeitamente cimentadas, para passear o tédio da família aos domingos, circulará repetidamente em metropolitanos convencido de que cada nova paragem é diferente da anterior.
E estou absolutamente crente que do naufrágio calamitoso apenas se hão-de salvar os que pela porta do cavalo fugirem ao triturar das grandes colectividades humanas, ou os que por força invencível e instintiva se libertarem para uma nova categoria de homem, ou, melhor dizendo, para a sua verdadeira categoria de homem, de homem-pensamento, na linha directa de um Platão, de um Homero, de um Aristófanes,
A Inutilidade do Viajar
Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o simples facto de viajar? Não é isso que modera os prazeres, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra os excessos das paixões eróticas, que, em suma, arranca os males que povoam a alma. Não faculta o discernimento nem dissipa o erro, apenas detém a atenção momentaneamente pelo atractivo da novidade, como a uma criança que pasma perante algo que nunca viu! Além disso, o contínuo movimento de um lado para o outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do espírito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos voando como aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram. Viajar dá-nos a conhecer novas gentes, mostra-nos formações montanhosas desconhecidas, planícies habitualmente não visitadas, ou vales irrigados por nascentes inesgotáveis; proporciona-nos a observação de algum rio de características invulgares, como o Nilo extravasando com as cheias de Verão, o Tigre, que desaparece à nossa vista e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais longe o seu abundante caudal, ou ainda o Meandro, tema favorito das lucubrações dos poetas, contorcendo-se em incontáveis sinuosidades,
Luto por uma Novidade de Espírito
Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pode me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.
Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trémula. Como o que acontece com a água quando se mergulha a mão na água.
Memória vs Recordação – As Armas da Juventude e da Velhice
Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar,
A Variedade é a Única Desculpa da Abundância
A variedade é a única desculpa da abundância. Ninguém deveria deixar vinte livros diferentes, a menos que seja capaz de escrever como vinte homens diferentes. As obras de Victor Hugo enchem cinquenta grossos volumes, mas cada volume, cada página quase, contém todo o Victor Hugo. As outras páginas somam-se como páginas, não como génio. Nele não existia produtividade, mas prolixidade. Desperdiçou o seu tempo como génio, por pouco que o tivesse desperdiçado como escritor. A opinião de Goethe a seu respeito continua a ser suprema, apesar de ter sido precocmente emitida, e uma grande lição para todos os artistas: «Deveria escrever menos e trabalhar mais», disse ele. Este parecer, na sua distinção entre o trabalho a sério, que não se espraia, e o trabalho fictício, que ocupa espaço (pois as páginas nada mais são do que espaço), é uma das grandes opiniões críticas do mundo.
Se conseguir escrever como vinte homens diferentes, é vinte homens diferentes, seja lá como for, e os seus vinte livros têm justificação.
Um homem e uma mulher são a tal ponto a mesma coisa, que quase não se entende a quantidade de distinções e raciocínios subtis dos quais a sociedade se nutre sobre esta questão.
Sou um simples rural e fico admirado e intimidado pelas distinções e honras que as pessoas, por qualquer incompreensível razão, decidem outorgar-nos.
A Independência da Solidão
O que me importa unicamente é o que tenho de fazer, não o que pensam os outros. Esta regra, igualmente árdua na vida imediata como na intelectual, pode servir para a distinção total entre a grandeza e a baixeza. E é tanto mais dura quanto sempre se encontrarão pessoas que acreditam saber melhor do que tu qual é o teu dever. É fácil viver no mundo de conformidade com a opinião das gentes; é fácil viver de acordo consigo próprio na solidão; mas o grande homem é aquele que, no meio da turba, mantém, com perfeita serenidade, a independência da solidão.
Saber Estar em Sociedade
O homem que não tem mais do que o próprio valor necessita de ser excelente em grande número de virtudes, tal como a pedra que não é preciosa necessita de ser revestida de metal; mas comummente acontece com a reputação o mesmo que com o lucro, se é verdadeiro o provérbio que diz: que com leves ganhos se fazem pesadas bolsas, porque estes são frequentes, enquanto os grandes só chegam de vez em quando; assim, também é verdade que pequenas coisas ganham grande recomendação, porque são de uso e de observação corrente, enquanto a ocasião de manifestar grandes virtudes só é dada nos dias-santos. Para adquirir boas maneiras basta apenas não as desdenhar, porque, habituando-nos a observá-las nos outros, deixamos confiadamente operar em nós a imitação; pois se cuidarmos de as exprimir, perdem logo a sua graça, a qual é serem naturais e desafectadas. O comportamento de cada homem deve ser como um verso, no qual todas as sílabas são medidas. Como pode um homem ocupar-se de grandes assuntos, se quebra demasiado o seu espírito com mesquinhas observações? Não usar completamente de cerimónias é ensinar aos outros que não as usem também, e assim diminuir o respeito próprio; especialmente, não devem ser omitidas perante estrangeiros e pessoas desconhecidas.
A Subjectividade dos Comportamentos
Podemos ter para com as coisas que nos acontecem ou que fazemos uma atitude mais geral ou mais pessoal. Podemos sentir uma pancada não apenas como dor, mas também como ofensa, e neste caso ela torna-se cada vez mais insuportável; mas também aceitá-la desportivamente, como um obstáculo que não nos intimidará nem nos arrastará para uma ira cega, e então não é raro nem sequer darmos por ela. Neste segundo caso, porém, o que aconteceu foi apenas que integrámos essa pancada num contexto mais geral, o do combate, e em função disso a natureza do golpe revelou-se dependente da tarefa que tem de desempenhar. E precisamente este fenómeno, que leva a que um acontecimento receba o seu significado, e mesmo o seu conteúdo, mediante a sua inserção numa cadeia de acções consequentes, produz-se em todos os indivíduos que não o encaram apenas como acontecimento pessoal, mas como desafio à sua capacidade intelectual.
Também ele será mais superficialmente afectado nas suas emoções pelo que faz. Mas, estranhamente, aquilo que se vê como sinal de inteligência superior num pugilista é visto como frieza e insensibilidade em pessoas que não sabem de boxe e nas quais isso se deve à sua inclinação para uma determinada forma de vida intelectual.
Os Momentos Decisivos
Tendemos a pensar que a verdade das pessoas emerge nos momentos decisivos, no fio da navalha, quando se testam os limites. A hora dos santos e dos heróis. Ora bem, nesses momentos o comportamento humano não costuma ser nem exemplar nem animador. A chusma que se acotovela para chegar primeiro à bilheteira da sala de concertos; os espectadores que se atropelam ao fugir de um teatro em chamas, espezinhando os mais fracos sem se aperceberem deles, a criança, as cansadas carnes do ancião, calcadas pelos tacões das jovens mulheres que se aperaltaram para a saída noturna; os honrados cidadãos, incluindo as senhoras — de boas famílias, ou de famílias humildes, nisso não há distinções —, que golpeiam furiosamente com os remos as cabeças dos náufragos que tentam subir para o bote salva-vidas superlotado. Salve-se quem puder.
Com o tempo torna-se clara à distinção entre o falso e o verdadeiro…
A Vaidade da Tua Imagem
Só podes ter esperanças de ser fiel se sacrificares a vaidade da tua imagem. É dizeres: «Eu penso como eles, sem distinção.» Ver-te-ás desprezado. Mas sendo, como és, parte desse corpo, queres lá saber do desprezo! Em vez de te importares com ele, agirás sobre esse corpo. E carregá-lo-ás com a tua própria inclinação. E irás buscar a tua honra à honra deles. Porque não há outra coisa a esperar.
Se tens motivos para teres vergonha, não te exponhas. Não fales. Rumina a tua vergonha. Essa indigestão que te forçará a restabeleceres-te na tua casa é excelente. Porque depende de ti. Mas aquele acolá tem os membros doentes. Que faz ele? Manda cortar os quatro membros. É doido. Podes procurar a morte para que ao menos em ti respeitem os teus. Mas não podes renegá-los, porque então é a ti que te renegas.
A vida já é um buraco de agulha tão estreitinho, e as suas obrigações, camelos tão gordos e abastecidos, que passar três quartos do ano a magicar numa distinção maniqueísta entre mulheres decentes e galdérias perniciosas, entre cãezinhos de rua e príncipes encantados, é matemática tão intricada como a dos fanatismos religiosos, políticos ou mesmo clubísticos: passamos uma vida inteira a identificar bons e maus – e, quando finalmente percebemos a soma zero do problema, já estamos com a pele encarquilhada e a tomar comprimidos para a tensão arterial.
O Professor como Mestre
Não me basta o professor honesto e cumpridor dos seus deveres; a sua norma é burocrática e vejo-o como pouco mais fazendo do que exercer a sua profissão; estou pronto a conceder-lhe todas as qualidades, uma relativa inteligência e aquele saber que lhe assegura superioridade ante a classe; acho-o digno dos louvores oficiais e das atenções das pessoas mais sérias; creio mesmo que tal distinção foi expressamente criada para ele e seus pares. De resto, é sempre possível a comparação com tipos inferiores de humanidade; e ante eles o professor exemplar aparece cheio de mérito. Simplesmente, notaremos que o ser mestre não é de modo algum um emprego e que a sua actividade se não pode aferir pelos métodos correntes; ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo; e o que importa, no seu juízo final, não é a ideia que fazem dele os homens do tempo; o que verdadeiramente há-de pesar na balança é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.
A sua contribuição terá sido mínima se o não moveu a tomar o caminho de mestre um imenso amor da humanidade e a clara inteligência dos destinos a que o espírito o chama;
O Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais o orgulho fundou castas e os estúpidos preconceitos de cor.
Somos vulgares, incultos e analfabetos; e, em relação a isso, confesso que não faço maiores distinções entre o analfabetismo de meus concidadãos que não aprenderam a ler e o que aprendeu a ler somente aquilo que se destinam às crianças e aos intelectos medíocres.
O Preço da Vaidade
Se o que se deseja é apenas dar sustento à natureza, bastam três libras esterlinas por ano, segundo a estimativa de William Petty; mas, como os tempos andam muito alterados, vamos supor seis libras. Essa quantia permitirá encher a pança, obter proteção contra as intempéries do clima, e até mesmo a compra de um casaco resistente, desde que feito de um bom couro de boi. Agora, tudo o que vá além disso é artificial e será desejado com vista a obter um maior grau de respeito dos nossos concidadãos. E, se seiscentas libras por ano proporcionam a um homem mais distinção social e, é claro, mais felicidade do que seis libras por ano, a mesma proporção vai-se manter para seis mil, e assim por diante, até onde se possa levar a opulência. Talvez o dono de uma grande fortuna possa não ser tão feliz como alguém que tem menos; mas isso decorrerá de outras causas que não a posse da grande fortuna.
Cegos como as Peças de Ouro Reluzentes
A Fama, a Glória, as Armas, a Nobreza,
A Ciência, o Poder e tudo quanto
Em honra e distinção, de canto a canto,
Encerra deste mundo a vã Grandeza,A Pluto, cego deus, com vil baixeza
Adoram de joelhos, como a santo:
Pois só o deus do reino atroz do espanto
Pode ser rei e Numen da riqueza.Do dossel do seu trono estão pendentes
C’roas, mitras, lauréis, brazões, tiaras,
Que o cego deus reparte às cegas gentes.Tudo of’rendar-lhe vai nas torpes aras,
Cegos co’as peças de ouro reluzentes,
A Honra, a Liberdade, as vidas caras.