Os Dois Infinitos
Duas coisas enchem a alma de admiração e de respeito sempre renovados e que aumentam à medida que o pensamento mais vezes se concentra nelas: acima de nós, o céu estrelado; no nosso íntimo, a lei moral. Não é necessário buscá-las e adivinhá-las como se estivessem ofuscadas por nuvens ou situadas em região inacessível, para além do meu horizonte; vejo-as ante mim e relaciono-as imediatamente com a consciência da minha existência. A primeira, a partir do lugar que ocupo no mundo exterior, estende a relação do meu ser com as coisas sensíveis a todo esse imenso espaço onde os mundos se sucedem aos mundos e os sistemas aos sistemas e a toda a duração ilimitada dos seus movimentos periódicos. A segunda parte do meu invisível eu, da minha personalidade e do meu posto num mundo que possui a verdadeira infinitude, mas no qual o entendimento mal pode penetrar e ao qual reconheço estar vinculado por uma relação não apenas contingente, mas universal e necessária (relação que também alargo a todos esses mundos visíveis).
Numa, a visão de uma infinidade de mundos quase aniquila a minha importância, na medida em que me considero uma criatura animal que, depois de ter (não se sabe como) gozado a vida durante um breve lapso de tempo,
Passagens sobre Mundo
3776 resultadosA pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos.
Soneto XXXII
Ao Reitor António de Mendonça
Famoso Alcides, que nos ombros altos
Esta soberba máquina sustentas,
E de Atlante a pessoa representas,
Que nunca de virtude os achou faltos.Seguros sem temor, sem sobre saltos
Andem quantos por teus experimentas,
Que apesar de mil hórridas tormentas,
Resistiram contigo a seus assaltos.Com tais ombros soster o mundo podes,
E se hoje te deténs neste trabalho
É um ensaio para mores coisas,Que como a todo peso sempre acodes,
E vas subindo acima por atalho,
Para cansares mais, aqui repousas.
O mundo ao nosso redor só se transformará ao mudarmos a nossa própria pessoa.
Ode à Criança
A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-elaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo, sufocando-a com um saber artificial e morto, e orientando-a no sentido de finalidades que lhe são estranhas. A criança é sem finalidade, cria brincando e crescendo suavemente; se não for perturbada pela violência, não aceita nada que não possa verdadeiramente assimilar; todo o objecto em que toca vive, a criança é cosmos, mundo, vê as últimas coisas, o absoluto, ainda que não saiba dar-lhes expressão: mas mata-se a criança ensinando-a a ater-se a finalidades e agrilhoando-a a uma rotina vulgar a que, hipocritamente, se chama realidade.
Se Me Deixares, Eu Digo
Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente;
E, n’este mundo de enganos,
Falla verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado commigo,
Não procures ser ausente:
– Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente.
As palavras são pequenas formas no maravilhoso caos que é o mundo. Formas que focalizam e prendem idéias, que afiam os pensamentos, que conseguem pintar aquarelas de percepção.
Ninguém pode achar que falhou a sua missão neste mundo, se aliviou o fardo de outra pessoa.
Canto Efêmero
Feliz no mundo eu só!… Ninguém mais é feliz!
Ninguém mais é feliz!… Eu só, sorrio e canto!
Enfim o teu amor!… Quanta coisa! Quem diz,
– quem poderia crer que eu merecesse tanto!Esplendor! a paisagem mudou por encanto!
No negro da minha alma há rabiscos de giz
traçando ante meus olhos trêmulos de espanto.
-“Feliz no mundo, eu só!… Ninguém mais é feliz!”Certo do teu amor, tudo ao redor se anima,
em ouro se transforma a fuligem do pó
e a minha alma, a beleza das coisas sublima!Enfim o teu amor!… E o teu amor primeiro!
Meu Deus! eu sou feliz!… Feliz no mundo eu só!
Ninguém mais é feliz, ninguém!… no mundo inteiro!
Não são as Circunstâncias que Decidem a Nossa Vida
A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante, superior a todas as históricamente conhecidas. Mas assim como o seu formato é maior, transbordou todos os caminhos, princípios, normas e ideais legados pela tradição. É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino.
Mas agora é preciso completar o diagnóstico. A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajectória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este,
Uma Direcção, e Não Soluções
A diferença entre solução e direcção é esta: a solução é sempre um remédio passageiro para disfarçar a desgraça. Ao passo que a direcção é a própria dignidade posta nas mãos do desgraçado para que deixe de o ser, e a direcção única é a garantia perpétua dessa dignidade. E foi o que fez Goethe: Descobriu a direcção única. Artista, na verdadeira acepção da palavra; Artista é aquele que precede a própria ciência. Por isso Goethe afastou-se de quantas realidades irrealizáveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impassível, desde cima, assistiu ao desenrolar da tragédia. E viu o mundo inteiro por cima de todas as cabeças, e viu a Europa toda e com cada um dos seus pedaços, e viu cada indivíduo da Humanidade como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na parábola da sua própria trajectória, e viu que de todos os seres deste mundo o único que errava o seu fim era o Homem, o dono da Terra! E viu que era na Humanidade que estavam os únicos seres deste mundo que não cumpriam com o seu próprio destino, e finalmente viu! Viu com os seus próprios olhos o que ninguém tinha visto antes dele.
A riqueza de um homem está em seu coração. É em seu coração que ele é o rei do mundo. Viver não exige a posse de tantas coisas.
Como se Faz uma Declaração de Amor?
Mas então como se faz uma declaração de amor? Em papel selado, na presença de um advogado. Por que não? As piores declarações são as pífias e clandestinas, do género «Acho-te uma pessoa muito interessante». As melhores são aquelas que comprometem quem as faz, que se baseiam em provas capazes de serem apresentadas em tribunal, que fazem corar as testemunhas. As declarações do tipo «Experimentar-a-ver-se-dá» nunca dão. É melhor mandar imprimir 2000 folhetos e distribuí-los por avioneta à população, devidamente identificados, do que um bilhetinho anónimo de «um admirador». As declarações de amor têm de cortar a respiração de quem as recebe, têm de rebentar na cara de quem as lê. O amor e o terrorismo são questões de objectivo, e não de grau.
Como estamos todos a zero, ninguém pode dar conselhos a ninguém. Há séculos que as maiores cabeças do mundo procuram a frase perfeita de apresentação. Há as deixas rascas, do género «Deixe-me adivinhar o seu signo» ou «Não costuma cá estar às terças-feiras, pois não?». Há as deixas pirosas, do género «Importa-se que eu lhe diga que você é muito bonita?» ou «Posso só dizer-lhe uma coisa? O seu namorado tem muita sorte!». Depois,
Nada no mundo é permanente, e somos tolos em desejar que uma coisa perdure, mas mais tolos ainda seríamos se não a apreciássemos enquanto a temos.
A arte não é uma tentativa de reconciliar a existência com a sua própria visão; não passa de uma tentativa de criar o seu próprio universo neste mundo.
A Dependência é a Raiz de Todos os Males
O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele,
Porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo. Hoje eu sei que ninguém nesse mundo é feliz tendo amado uma vez, uma vez…
O Sustentáculo do Amor
A paz é algo que nenhum homem pode dar a outro. Um dos fins mais importantes para quem arrisca ser quem é será o de construir a sua própria paz. Esta resulta de um trabalho duro de equilíbrio das vontades, de uma harmonização árdua das diferentes dimensões interiores, como o pensar e o sentir; é um estado ágil e dinâmico que, ao limite, permite ultrapassar e vencer qualquer adversidade.
A paz não é o estado de quem vive uma ausência de conflitos, é o resultado da conciliação corajosa das diferentes forças que, dentro e fora de cada homem, tentam prevalecer sobre as demais, menosprezando-se mutuamente.Muitos são os que julgam ter encontrado a paz quando se livram do sonho do amor. Estão enganados, o caminho até à felicidade é ainda longo para quem cansado assim se contenta, repousando de uma luta que nem chegou a começar.
A paz é um ponto de passagem de quem ruma à plenitude da vida. A paz é o ponto de partida para o amor, que por sua vez lança o homem para a felicidade. A paz é o ponto de chegada dos que sofrem as dores mais profundas.
A verdade é tranquila.
Todo o mundo está cheio de sofrimento. Mas está também cheio de superação.
O roubo é uma instituição estável num mundo instável.