Textos sobre Portas

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Textos de portas escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Do Outro Lado

Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direcção das nascentes.

Símios Aperfeiçoados II

A tragédia é a cristalização da massa humana, tão perigosa como a estagnação do espírito do homem que se torna académico ou fenece por falta de entusiasmo. Gostava de saber quantas pessoas pensam em macacos durante o correr de um dia? Quantas? O homem-massa, num futuro próximo – em relações antropológicas o próximo leva geralmente centenas de anos – transformar-se-á num novo espectáculo de jardim zoológico. Em vez de jaula e aldeias de símios, ele terá balneários públicos e campos para habilidades desportivas, com ocasionais jogos nocturnos. Dará palmas em delírio ouvindo ainda o som distante da sineta tocada pelo elefante num acto máximo de inteligência paquidérmica. Terá circuitos fechados, com pistas perfeitamente cimentadas, para passear o tédio da família aos domingos, circulará repetidamente em metropolitanos convencido de que cada nova paragem é diferente da anterior.
E estou absolutamente crente que do naufrágio calamitoso apenas se hão-de salvar os que pela porta do cavalo fugirem ao triturar das grandes colectividades humanas, ou os que por força invencível e instintiva se libertarem para uma nova categoria de homem, ou, melhor dizendo, para a sua verdadeira categoria de homem, de homem-pensamento, na linha directa de um Platão, de um Homero, de um Aristófanes,

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O Conflito entre o Conhecimento e a Fé

Durante o último século, e parte do século anterior, era largamente aceite a existência de um conflito irreconciliável entre o conhecimento e a fé. Entre as mentes mais avançadas prevaleceu a opinião de que estava na altura de a fé ser substituída gradualmente pelo conhecimento; a fé que não assentasse no conhecimento era superstição e como tal deveria ser reprimida (…)
O ponto fraco desta concepção é, contudo, o de que aquelas convicções que são necessárias e determinantes para a nossa conduta e julgamentos não se encontram unicamente ao longo deste sólido percurso científico. Porque o método científico apenas pode ensinar-nos como os factos se relacionam, e são condicionados, uns com os outros. A aspiração a semelhante conhecimento objectivo pertence ao que de mais elevado o homem é capaz, e ninguém suspeitará certamente de que desejo minimizar os resultados e os esforços heróicos do homem nesta esfera. Porém, é igualmente claro que o conhecimento do que é não abre directamente a porta para o que deveria ser. Podemos ter o mais claro e mais completo conhecimento do que é e, contudo, não ser capazes de deduzir daí qual deveria ser o objectivo das nossas aspirações humanas. O conhecimento objectivo fornece-nos instrumentos poderosos para a realização de determinados fins,

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A Minha Lista dos Grandes Autores

Uma revista espanhola teve a ideia de pedir a uns quantos escritores que elaborassem a sua árvore genealógica literária, isto é, a que outros autores consideravam eles como avoengos seus, directos ou indirectos, excluindo-se do inventado parentesco, obviamente, qualquer presunção de relações ou equivalências de mérito que a realidade, pelo menos no meu caso, logo se encarregaria de desmentir. Também se pedia que, em brevíssimas palavras, fosse dada a justificação dessa espécie de adopção ao contrário, em que era o «descendente» a escolher o «ascendente». A cada escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão-de vir a aparecer os retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respectiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no «Ano da Morte de Ricardo Reis», todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, porque demonstrou que não é preciso ser-se génio para escrever um livro genial,

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Apto e Inapto, Verdade e Mentira

A duração, seja os séculos para as civilizações, seja os anos e as dezenas de anos para o indivíduo, tem uma função darwiniana de eliminação do inapto. O que está apto para tudo é eterno. É apenas nisto que reside o valor daquilo a que chamamos a experiência. Mas a mentira é uma armadura com a qual o homem, muitas vezes, permite ao inapto que existe em si sobreviver aos acontecimentos que, sem essa armadura, o aniquilariam (bem como ao orgulho para sobreviver às humilhações), e esta armadura é como que segregada pelo inapto para prevenir uma situação de perigo (o orgulho, perante a humilhação, adensa a ilusão interior). Subsiste na alma uma espécie de fagocitose; tudo o que é ameaçado pelo tempo, para não morrer, segrega a mentira e, proporcionalmente, o perigo de morte. É por isso que não existe amor pela verdade sem uma admissão ilimitada da morte. A cruz de Cristo é a única porta do conhecimento.

Ao Longo da Escrita deste Livro

No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mãe incentivou-me a dar um passeio. Há muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lês que treslês, mas mantém o hábito de, cuidadosa, depois de bater à porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: não te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, não tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capítulo altruísta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mãos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizá-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distância de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que não se alterou quando saí do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome é que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pôr-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panões carregados debaixo da última oliveira e os levaram às costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panões vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor.

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Deixa o que Seduz a Multidão

Se nós nada fizermos senão de acordo com os ditames da razão, também nada evitaremos senão de acordo com os ditames da razão. Se quiseres escutar a razão, eis o que ela te dirá: deixa de uma vez por todas tudo quanto seduz a multidão! Deixa a riqueza, deixa os perigos e os fardos de ser rico; deixa os prazeres, do corpo e do espírito, que só servem para amolecer as energias; deixa a ambição que não passa de uma coisa artificialmente empolada, inútil, inconsciente, incapaz de reconhecer limites, tão interessada em não ter superiores como em evitar até os iguais, sempre torturada pela inveja, e uma inveja ainda por cima dupla. Vê como de facto é infeliz quem, objecto de inveja ele próprio, tem inveja por outros.
Não estás a ver essas casas dos grandes senhores, as suas portas cheias de clientes que se atropelam na entrada? Para lá entrares, teria de sujeitar-te a inúmeras injúrias, mas mais ainda terias de suportar se entrasses. Passa frente às escadarias dos ricos senhores, aos seus átrios suspensos como terraços: se lá puseres os pés será como estares à beira de uma escarpa, e de uma escarpa prestes a ruir. Dirige ante os teus passos na via da sapiência,

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Os Comunistas

… Passaram bastantes anos desde que ingressei no Partido… Estou contente… Os comunistas constituem uma boa família… Têm a pele curtida e o coração valoroso… Por todo o lado recebem pauladas… Pauladas exclusivamente para eles… Vivam os espiritistas, os monárquicos, os aberrantes, os criminosos de vários graus… Viva a filosofia com fumo mas sem esqueletos… Viva o cão que ladra e que morde, vivam os astrólogos libidinosos, viva a pornografia, viva o cinismo, viva o camarão, viva toda a gente menos os comunistas… Vivam os cintos de castidade, vivam os conservadores que não lavam os pés ideológicos há quinhentos anos… Vivam os piolhos das populações miseráveis, viva a força comum gratuita, viva o anarco-capitalismo, viva Rilke, viva André Gide com o seu coribantismo, viva qualquer misticismo… Tudo está bem… Todos são heróicos… Todos os jornais devem publicar-se… Todos devem publicar-se, menos os comunistas… Todos os políticos devem entrar em São Domingos sem algemas… Todos devem festejar a morte do sanguinário Trujillo, menos os que mais duramente o combateram… Viva o Carnaval, os derradeiros dias do Carnaval… Há disfarces para todos… Disfarces de idealistas cristãos, disfarces de extrema-esquerda, disfarces de damas beneficentes e de matronas caritativas… Mas, cuidado, não deixem entrar os comunistas…

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Aperta-me para Sempre

O dia adormece-me debaixo dos olhos, e as tuas mãos são a pele que Deus escolheu para tocar o mundo; não existe nenhum lugar mais divino do que o teu beijo, e quando quero voar deito-me a teus pés.
Peço-te que não vás, que fiques apenas para eu ficar, que permaneças no teu lado da cama, e eu no meu, a sentirmos que o tempo corre, e podes até adormecer, podes ler a revista das mulheres das passadeiras vermelhas e os homens com os abdominais que ninguém tem, ou simplesmente olhar o tecto e pensar em ti; eu fico aqui, a olhar-te para saber que existo, a pensar no quanto te quero e no tamanho que tem o teu corpo dentro do meu. Saber que há a curva das tuas costas para encontrar a curva da vida, percorrer com os olhos o cair do teu suor, e perceber a eternidade possível.
A imortalidade é um orgasmo contigo.
Gemes até ao fim do mundo por dentro dos meus ouvidos, todo o meu corpo se vem quando estás a chegar, e a verdade do universo é a física exígua do espaço entre nós. Aperta-me para sempre até ao princípio dos ossos,

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O Fundo é o que Menos Falta Faz

Será possível plantar uma faia num jardim assim tão pequeno? Portas e janelas dos sete «ateliers» contíguos ligam umas com as outras, no pequeno pátio onde eu e o meu irmão vivemos. A semente da faia é uma banana um tanto podre ou uma batata. Há umas velhas que não andam nada contentes connosco. Mas se a faia crescer, nunca será demasiado grande, e se não cresce, de que servirá plantá-la? Ora, ao plantá-la, os meus amigos foram dar com as pedras preciosas que eu tinha perdido.

O Maior Triunfo do Homem

O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar.

Três coisas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silêncio a sua superioridade – o ridículo, o trabalho e a dedicação.
Como não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia. Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para não se incomodar como para não aproximar as coisas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniência do orgulho e da desilusão. Aprende a sentir tudo sem o sentir directamente; porque sentir directamente é submeter-se – submeter-se à acção da coisa sentida.

Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida.

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A Formação como Homem

Nos dias melhores, permitia-se acreditar que, se ela deixava as portas abertas entre as salas públicas e privadas, era sobretudo por causa dele. Mas, detectada a sua presença, tudo nos gestos dela passava a ser ponderado em função de o deixar de fora daquela intimidade.

De resto, sempre que ouvia os movimentos de Luísa no jardim, saía-lhe ao caminho com uma desculpa qualquer. Uns dias estava nervosa, resplandecente, elegante como um cavalo de corrida. Outros estava triste e silenciosa. E, contudo, era como se as coisas continuassem a ganhar vida à sua passagem. As coisas e ele próprio, sonhando em plena meia-idade, como se ainda não fosse demasiado tarde para concluir a sua formação como homem.

Prosema I

Com a devida vénia me reparto junto do tampo de mármore meu secretário tão certo. Desde quando deixara eu de ouvir esta palavra? Logrei substituí-la numa manhã óptima mas não esta em que a mola salta reprimida sabe-se lá donde, algures na hipófise.
Na confraria dos reclusos outras quimeras se aventam como Sol, Mãe, Amada, até que o tempo nosso inimigo se distancie e nos abandone por instantes. Na laje já sobre a qual o papel branco me obedece sem que o habitem outros sinais, pequeninos veios avolumam-se em áreas mais densas, configurando pássaros de porcelana chinesa. Afundo-me neste fundo para descobrir-lhes um sentido, branco, amarelo, de novo branco, cada centímetro um fuso de seres minúsculos, buscando reorganizar-se, perder-se, reagrupar-se.
De anacoreta nada tenho, só de multidões entre Cacilhas, Piedade e o Barreiro. E Campo de Ourique, que digo! A minha mão move-se, o pensamento pára, descubro as uvas pendentes como se fora Verão e o Sol ferisse como se o olhara de frente. Nem o ruído dos pássaros habituais junto à janela nos veio dar os bons dias, o funcionário impreterível virá à hora impreterível. Muito longe fora de portas um galo ou a sua ausência. Tenho uma toalha,

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O Sensacionismo

Sentir é criar.
Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o Universo não tem ideias.
– Mas o que é sentir?
Ter opiniões é não sentir.
Todas as nossas opiniões são dos outros.
Pensar é querer transmitir aos outros aquilo que se julga que se sente.
Só o que se pensa é que se pode comunicar aos outros. O que se sente não se pode comunicar. Só se pode comunicar o valor do que se sente. Só se pode fazer sentir o que se sente. Não que o leitor sinta a pena comum [?].
Basta que sinta da mesma maneira.
O sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha a alma.
A lucidez só deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias antecâmaras é proibido ser explícito.
Sentir é compreender. Pensar é errar. Compreender o que outra pessoa pensa é discordar dela. Compreender o que outra pessoa sente é ser ela. Ser outra pessoa é de uma grande utilidade metafísica. Deus é toda a gente.
Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar – são os únicos mandamentos da lei de Deus. Os sentidos são divinos porque são a nossa relação com o Universo,

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Serenidade Desperta

Tenho tanta coisa para fazer. Pois, mas aquilo que faz, fá-lo com qualidade? Conduzir até ao emprego, falar com os clientes, trabalhar no computador, fazer recados, lidar com os incontáveis afazeres que preenchem a sua vida quotidiana – até que ponto é que se entrega às coisas que faz? E realiza-as com entrega, sem resistência, ou, pelo contrário, sem se entregar e resistindo à acção? É isto que determina o sucesso na vida e não a dose de esforço que se despende. O esforço implica stresse e desgaste físico, implica a necessidade absoluta de atingir um determinado objectivo ou de alcançar um determinado resultado.

É capaz de detectar dentro de si até a mais pequena sensação de não quererestar a fazer aquilo que está a fazer? Isso é uma negação da vida e, desse modo, não será possível obter resultados verdadeiramente bons.

Se for capaz de descobrir aquela sensação, será que também consegue abdicar dela e entregar–se completamente àquilo que faz?

“Fazer uma coisa de cada vez”, foi assim que um Mestre Zen definiu o espírito da filosofia Zen.

Fazer uma coisa de cada vez significa estar nela por inteiro, concentrar nela toda a sua atenção.

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Neruda e García Lorca em Homenagem a Rubén Dario

Eis o texto do discurso:

Neruda: Senhoras…

Lorca: …e senhores. Existe na lide dos touros uma sorte chamada «toreio dei alimón», em que dois toureiros furtam o corpo ao touro protegidos pela mesma capa.

Neruda: Federico e eu, ligados por um fio eléctrico, vamos emparelhar e responder a esta recepção tão significativa.

Lorca: É costume nestas reuniões que os poetas mostrem a sua palavra viva, prata ou madeira, e saúdem com a sua voz própria os companheiros e amigos.

Neruda: Mas nós vamos colocar entre vós um morto, um comensal viúvo, escuro nas trevas de uma morte maior que as outras mortes, viúvo da vida, da qual foi na sua hora um marido deslumbrante. Vamos esconder-nos sob a sua sombra ardente, vamos repetir-lhe o nome até que a sua grande força salte do esquecimento.

Lorca: Nós, depois de enviarmos o nosso abraço com ternura de pinguim ao delicado poeta Amado Villar, vamos lançar um grande nome sobre a toalha, na certeza de que vão estalar as taças, saltar os garfos, buscando o olhar que todos anseiam, e que um golpe de mar há-de manchar as toalhas. Nós vamos evocar o poeta da América e da Espanha: Rubén…

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Entendimento Lúcido do Futuro

Uma diferença característica e muito frequente na vida diária entre as cabeças comuns e as sensatas é que as primeiras, na sua ponderação e avaliação sobre possíveis perigos, querem saber e levam em conta apenas o que de semelhante já terá acontecido. As outras, pelo contrário, ponderam o que possivelmente poderia acontecer. É como se tivessem em mente o provérbio espanhol: «O que não acontece num ano, acontece num instante». Decerto, a diferença em questão é natural, pois, para abarcar com a vista aquilo que pode acontecer, é preciso entendimento; já para ver aquilo que aconteceu, são suficientes os sentidos.
A nossa máxima, então, é: sacrifica-te aos demónios malignos. Por outras palavras, não se deve temer uma certa perda de esforço, tempo, desconforto, transtorno, dinheiro ou privação, para fechar as portas à possibilidade de uma desgraça. E quanto maior a desgraça, tanto menor, mais remota e improvável a sua possibilidade. O exemplo mais claro desta regra é o prémio do seguro. Ele é um sacrifício público oferecido por todos no altar dos demónios malignos.

Civilização de Especialistas

A verdade é que hoje vivemos numa civilização de especialistas e que é vão todo o empenho de que seja de outro modo. Sob pena de não ser eficiente, o homem das artes, das ciências e das técnicas tem de se especializar, para que domine aqueles segredos de bibliografia ou de prática, e para que obtenha os jeitos e a forte concentração de pensamento que se tornam necessários para que se possa não só manejar o que se herdou mas acrescentar património para as gerações futuras. E, se é certo que por um lado o especialismo favorece aquela preguiça de ser homem que tanto encontramos no mundo, permite ele, por outro lado, aproveitar em tarefas úteis indivíduos que pouco brilhantes seriam no tratamento de conjuntos. O preço, porém, se tem naturalmente de pagar; paga-o o colectivo quando se queixa, e muito justamente, da falta de bons líderes, de homens com uma larga visão de conjunto, que saibam do trabalho de cada um o suficiente para o poderem dirigir e se tenham eles tornado especialistas na difícil arte de não ter especialidade própria senão essa mesma do plano, da previsão e do animar na batalha as tropas que, na maior parte das vezes,

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O Engano da Bondade

Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra.
Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não flexíveis e submissos.
Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre – ou quase sempre – mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estuta estupidez.
Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe,

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A Censura Existe Em Todo o Lado

Eu acho que a censura existiu sempre e provavelmente vai existir sempre. Porque a censura para o ser não necessita de ter claramente uma porta aberta com um letreiro, onde se diga que ali há pessoas que lêem livros ou vão ver espectáculos. Não! A censura existe de todas as maneiras, porque todas as pessoas, nos diferentes níveis de intervenção em que se encontram, por boas ou más razões, seleccionam, escolhem, apagam, fazem sobressair. E isso são actos de ocultação ou de evidenciação que, no fundo, em alguns casos, são actos formais de censura.
(Quanto à censura oficial dos tempos de ditadura) Aquilo que a censura demonstrou e demonstra, em qualquer caso, é que felizmente os escritores, dependendo das situações em que se encontram, são muito mais ricos de meios, de processos de fazer chegar aquilo que querem dizer aos outros, do que se imagina. Evidentemente, numa situação de censura, o escritor é obrigado a usar a escrita para comunicar isto ou aquilo ou aqueloutro, de uma maneira disfraçada, subterrânea, oculta; mas o que é importante não é que a censura o esteja a obrigar a fazer isso. O que é importante é que ele seja capaz de o fazer.

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