MiserĂĄveis Macabros

É que nĂŁo foram tĂŁo poucas como isso as vezes que vi a piedade enganar-se. NĂłs, que governamos os homens, aprendemos a sondar-lhes os coraçÔes, para sĂł ao objecto digno de estima dispensarmos a nossa solicitude. Mais nĂŁo faço do que negar essa piedade Ă s feridas de exibição que comovem o coração das mulheres. Assim como tambĂ©m a nego aos moribundos, e alĂ©m disso aos mortos. E sei bem porquĂȘ.
Houve uma altura da minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas Ășlceras. AtĂ© chegava a apalavrar curandeiros e a comprar bĂĄlsamos por causa deles. As caravanas traziam-me de uma ilha longĂ­nqua unguentos derivados do ouro, que tĂȘm a virtude de voltar a compor a pele ao cimo da carne. Procedi assim atĂ© descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportĂĄvel fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar com bosta aquelas pĂșstulas, como quem estruma uma terra para dela extrair a flor cor de pĂșrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridĂŁo e gabavam-se das esmolas recebidas.
Aquele que mais ganhara comparava-se a si prĂłprio ao sumo sacerdote que expĂ”e o Ă­dolo mais prendado. Se consentiam em consultar o meu mĂ©dico, era na esperança de que o cancro deles o surpreendesse pela pestilĂȘncia e pelas proporçÔes. Chegavam a empregar os cotos para conquistar um lugar no mundo. DaĂ­ tambĂ©m o aceitarem os cuidados como uma homenagem e oferecerem os membros a abluçÔes bajuladoras. Mas, apenas o mal os deixava, descobriam-se sem importĂąncia. JĂĄ nada alimentavam que fosse deles prĂłprios, davam-se por inĂșteis. O Ășnico remĂ©dio era ressuscitar de novo essa Ășlcera que vivia Ă  custa deles. E, uma vez envoltos de novo no seu mal, gloriosos e vĂŁos, pegavam na escudela, e tornavam a empreender o caminho das caravanas. Voltavam a espoliar os viajantes em nome dos seus sĂłrdidos deuses.