Citação de

A Justa Medida, sem Grandezas nem Excessos

Uma grande alma distingue-se por desprezar a grandeza, e por preferir a justa medida aos excessos, já que a primeira se limita ao que é útil e indispensável à vida, enquanto os últimos se tornam nocivos pelo próprio facto de serem supérfluos. É assim que a fertilidade excessiva prejudica as searas, os colmos partem-se com o peso e a demasiada abundância de grão não chega a amadurecer. O mesmo ocorre com as almas corroídas por um bem estar desmesurado, do qual usam em prejuízo não só dos outros como de si próprias. Nenhum inimigo inflingiu a alguém golpes tão duros como aqueles que certas pessoas sofrem ocasionados pelos próprios prazeres. Só uma coisa pode desculpar a imoderação, a louca voluptuosidade de tal gente: é que sofrem a consequência dos seus actos.
Não é sem razão, aliás, que uma tal loucura se apodera delas: o desejo de ultrapassar os limites naturais descamba necessariamente na desmesura. A necessidade natural tem o seu termo próprio, enquanto as necessidades artificiais derivadas do prazer nunca conhecem limitações. A utilidade serve de medida ao que é indispensável; mas por que padrão aferir o que é supérfluo? Por conseguinte, muitos afundam-se em prazeres sem os quais, uma vez transformados em hábito, já não podem passar; são estes os mais deploráveis de todos, pois se deixaram chegar a um ponto tal em que se lhes tornou indispensável uma coisa que começou por ser apenas supérflua. Em vez de os desfrutar, tornam-se escravos do prazer; e, para cúmulo da desgraça, acabam por amar aquilo mesmo que os torna desgraçados. Atinge-se assim o cume da infelicidade: a degradação torna-se, de prazer, em condição natural; quando os vícios se transformam em hábito deixa de ser possível a aplicação de qualquer remédio.