A Esterilidade do Quotidiano
Rara serĂĄ a existĂȘncia que actualmente se nĂŁo deixe balouçar ao sabor das correntes, cada hora impelida a um rumo diferente pela Ășltima notĂcia que se leu ou pela Ășltima conversa que se teve. Sem fim a que aponte, a alma da maioria dos homens flutua na vida com a fraca vontade e a gelatinosa consistĂȘncia das medusas; um dia se sucede a outro dia sem que o viver represente uma conquista, sem que a manhĂŁ que renasce seja uma criação do nosso prĂłprio espĂrito e nĂŁo o fenĂłmeno exterior que passivamente se aceita e que por hĂĄbito nos impele a um determinado nĂșmero de acçÔes; desfez-se a crença em que o mundo Ă© formado pelo homem, em que o reino de Deus terĂĄ de ser obtido, nĂŁo como uma dĂĄdiva dependente do arbĂtrio de um ente superior, mas como a paciente, firme, contĂnua construção dos seus futuros habitantes. DaĂ a facilidade das entregas aos que ainda aparecem com dedos de escultor, daĂ os desĂąnimos e as indiferenças, daĂ o supor-se que apenas surgimos no mundo para nos garantirmos, diariamente, um almoço, um jantar e uma casa; perdem-se as almas nas tarefas inferiores do existir, nenhuma grande aspiração de beleza, de liberdade e de amor guia atravĂ©s das noites obscuras e dos cerrados nevoeiros aqueles mesmo que nasceram mais fortemente desprendidos das animalidades primitivas.
HĂĄ como que o prazer da desordem, da irresolução, do pensamento confuso; quase se tornou censurĂĄvel marchar com a regularidade dos astros, divinizou-se o acto imprevisĂvel e o gesto que vem contrariar o do momento anterior; ninguĂ©m pĂĄra um instante para reflectir, coordenar as ideias, eliminar as que se mostram incapazes de em acordo se ligarem ao que de seguro ficou estabelecido. A fala medida e o silĂȘncio que fazem possĂvel o diĂĄlogo e pelo diĂĄlogo a viagem aos bordos mais longĂnquos do universo cederam o lugar a um discurso plural que deve ser aos ouvidos de Deus como zumbido importuno de insecto que teima em passar atravĂ©s da vidraça; quebra-se a barreira ateniense da harmonia e a barreira espartana da vontade e dĂĄ-se livre curso aos Ămpetos, aos repentes, aos caprichos; troca-se o manso fluir dos grandes rios, a ondulação poderosa e calma do mar largo pelos cachĂ”es e as espumas das correntes que se entrechocam e batem. Que loucura vos tomou, meus irmĂŁos homens? Urge que apeeis o Acaso do lugar divino que lhe destes, que lanceis, como diques e caminho da vida, as fortes linhas da inteligĂȘncia ordenadora e da vontade, que acima de tudo se habitue a vossa alma a construir a existĂȘncia com a pureza, o nĂtido recorte e a querida abstenção da estrofe de um poema.