LĂşcia
(Alfred de Musset)
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mĂŁo formosa,
Na embriaguez da cisma,
TĂŞnue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmĂşrio; parecia a nota
De aura longĂnqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volĂşpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
OuvĂamos a noite, entre-fechada,
A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
E tĂnhamos quinze anos!LĂşcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava – e tanto ! –
Era assim de um irmĂŁo o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mĂŁos nas minhas;
TĂbia sombra dormia-lhe na fronte,
E a cada movimento – na minha alma
Eu sentia, meu Deus, como fascinam
Os dois signos de paz e de ventura:
Mocidade da fronte
E primavera da alma.
A lua levantada em céu sem nuvens
Com uma onda de luz veio inundá-la;
Ela viu sua imagem nos meus olhos,
Um riso de anjo desfolhou nos lábios
E murmurou um canto.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Filha da dor, ó lânguida harmonia!
LĂngua que o gĂŞnio para amor criara –
E que, herdada do céu, nos deu a Itália!
LĂngua do coração – onde alva idĂ©ia,
— Virgem medrosa da mais leve sombra, —
Passa envolta num véu e oculta aos olhos!
Que ouvirá, que dirá nos teus suspiros
Nascidos do ar, que ele respira – o infante?
Vê-se um olhar, uma lágrima na face,
O resto é um mistério ignoto às turbas,
Como o do mar, da noite e das florestas!Estávamos a sós e pensativos.
Eu contemplava-a. Da canção saudosa
Como que em nĂłs estremecia um eco.
Ela curvou a lânguida cabeça…
Pobre criança! – no teu seio acaso
DesdĂŞmona gemia? Tu choravas,
E em tua boca consentias triste
Que eu depusesse estremecido beijo;
Guardou-a a tua dor ciosa e muda:
Assim, beijei-te descorada e fria,
Assim, depois tu resvalaste Ă campa;
Foi, como a vida, tua morte um riso,
E a Deus voltaste no calor do berço.Doces mistérios do singelo teto
Onde a inocĂŞncia habita;
Cantos, sonhos de amor, gozos de infante,
E tu, fascinação doce e invencĂvel,
Que à porta já de Margarida, — o Fausto
Fez hesitar ainda,
Candura santa dos primeiros anos,
Onde parais agora?
Paz à tua alma, pálida menina!
Ermo de vida, o piano em que tocavas
Já não acordará sob os teus dedos!